Águas de antanho

Toinha expulsa os filhos do quiosque para receber nas entranhas a peãozada
01/10/2003

Com as fuças enfiadas em plantações e em pastagens que rodeiam seu amontoado de casas e suas ruas de terra e algum asfalto, no que se chamou piedosamente de cidade de Peabiru, o extremo da Avenida Vila Rica, depois de cruzar a rodovia, é o primeiro ponto de parada de ônibus podres, cacos sacolejantes de jipes sem capotas, precárias picapes, cavalos lerdos e andarilhos de embornais de pano de saco, encardidos nas mãos sempre suadas.

Os peões vêm vender galinhas, feijão, arroz, mamona, café, algodão, tudo em pequenas quantidades, o suficiente apenas para adquirir querosene, macarrão, sal, açúcar, fumo, fósforo e bebida.

Competindo com as vendas e as cerealistas que oferecem o primevo suprimento, os bares de mulher atraem a peãozada, cansada dos carinhos calosos da bronha, mais próximos da lanhação, e do conhecimento bíblico de éguas, galinhas e vacas mansas.

Depois da semana de trabalho nas lavouras, sábado é dia de outros plantios, de muita pinga e de um e outro pedaço de lingüiça, comido no meio de um pão de padaria (novidade das novidades), tudo praticado em pé, na frente do balcão, rapidinho para não desperdiçar a folga e a farra. A comida é sempre improvisada e pouca, apenas o suficiente para garantir sustança e dar vontade de enfrentar as pernas brancas das damas, amassar a rasteira mata e, com a destreza de quem usa a plantadeira matraca, deixar sementes nesses pântanos podres.

Na cabeça já quase rural da Avenida Vila Rica, num terreno abandonado na beira da estrada, uma única peça compõe a casa e o quiosque de Toninha, negra de alugados afetos e inumeráveis fetos nesta festa sem preservativos e de muitos aperitivos. O peão fica do lado de fora, toma suas pingas e depois de negociar o preço, entra pela porta lateral do quiosque. A dona expulsa os dois filhos, Fujam já daqui!, derruba a tampa sobre o balcão, fechando o comércio, para mostrar seu mais puro produto.

Pelas ruas, vemos José, o filho mais velho, negro como a mãe, e Mano, mulatinho esbranquiçado, filhos de desencontrados pais. José é alegre como uma lua cheia em noite de verão, sempre risonho e tímido, assiste tevê do lado de fora de nossa casa e ri de nós, dos programas, da vida — com ou sem freguês na cama de casal em que todos dormem. Muitas vezes, os meninos ficam do lado de fora do barraco a noite toda, esperando que o peão saia de manhãzinha para, em outros bares, curar a ressaca com mais cachaça e depois se afogar entre outras pernas.

Todos os dias, assim que escurece, minha mãe abre a janela da sala e já surge a carona redonda de José, pronta para a amizade. No Natal, levamos a eles garrafas de tubaína, alguma comida, um pedaço de carne. Ele começa a ajudar o padrasto no sítio e em outros serviços. Cresce forte e incapaz de um gesto mais rude. Mesmo se xingado, escancara carinhosamente a boca cheia de dentes e de cáries.

Mano quase não freqüenta nossa casa, perde-se por outros caminhos. Cedo, muito cedo, com apenas dez anos, se assanha com alguns assaltos, dorme o dia todo, larga a escola e vai aos poucos levando vida de bandido. Antes dos quinze sai pelo mundo, sem chegar a ver a morte da mãe, mais bêbada do que seus furtivos fregueses.

José fica um tempo na cidade e depois escorre para a capital, em busca de serviço. Mano é assassinado durante um assalto, sem completar vinte anos. Nós também abandonamos a cidade, guardando-a em nossas lembranças mais lânguidas. Os peões, todos sumiram, deixando apenas um rasto anônimo de filhos. E ao lado da cidade surgiu o grande circo de casas de conjunto.

Asfaltaram quase todas as ruas e isso não melhorou a vida em nada. É o mesmo sertão de sempre, agora sem gente nos sítios, todos acampados à espera da ajuda do governo.

Em uma de minhas voltas àquele território indócil, um jovem negro me cumprimenta enquanto passo de carro. Paro e reconheço José, que me conta, rindo, que está de novo e para sempre na terra de sua mãe morta e bem enterradinha — sobre o túmulo com apenas uma cruz plantou um canteiro de margaridas. Andou por São Paulo e outros lugares mais bonitos, mas não conseguiu esquecer a cidade que nos cicatrizou. Trabalha agora para os fazendeiros da região, me fala dos dois filhos e da mulher, me dá o endereço de uma casinha de conjunto (segundo minha mãe, muito bem arrumadinha) e nos esquentamos com a memória daquele tépido tempo.

Pulando de um assunto a outro, amigos mortos, mulheres desejadas, natais inesquecíveis, me diz que comprou uma tevê nova e que a casa já está quase paga.

Solta então um riso de satisfação, de orgulho e principalmente de amizade. Combinamos um encontro e saio satisfeito. Olho para ele, pedalando sua bicicleta nova. Tem o porte dos heróis.

P.S. No lugar do quiosque, destruído quando chegou o asfalto, furou-se um poço artesiano que abastece a cidade com sua água sem rancor.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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