A Pearl Street, em Boulder, Colorado, é uma rua com um trecho de pedestres onde, quando o clima permite, muita gente ganha a vida fazendo shows informais ao ar livre. Quando começa a esquentar um pouco, em março, garotos universitários vestidos com malhas no padrão do arco-íris vão para a rua engolir fogo, grupos de acrobatas sobem nos ombros uns dos outros diante dos cafés, adolescentes de dreadlocks tocam violão e cantam, outros preferem um violino. Um homem já colocou o piano no meio da rua.
Mês passado, eu e meu filho Gabriel um dia estávamos à toa e a pé no centro de Boulder. Era um dia desses, quase primavera, quase quente, entremeado por nevascas que de tempos em tempos ainda deixavam todo mundo dentro de casa. Levávamos livros debaixo do braço. No caso dele, um volume de alguma tetralogia sobre dragões. No meu caso, um livro que ainda não tinha lido mas que ia se transformar no meu preferido de John Fante: 1933 foi um ano ruim. Hoje gosto desse livro mais do que do mais cult dos seus romances, Pergunte ao pó.
1933 foi um ano ruim não se passa ainda na aterradora e sedutora Los Angeles, mas em Boulder, que no livro leva o nome fictício de Roper.
Boulder é hoje uma cidade ame-a ou deixe-a. Um lugar sui generis num estado jovem e inteiramente continental, o Colorado. Devia ser diferente nos tempos de John Fante, que nasceu ao que consta num bairro pobre de Denver, a capital, e depois cresceu e estudou em Boulder, a quarenta quilômetros dali. Nessa época, o prefeito de Denver era sabidamente um membro da Ku-Klux-Klan. A adolescência de Fante (e de seu alter ego Arturo Bandini, narrador de alguns de seus romances) transcorreu na época da grande depressão. A família de ambos vivia com dificuldade — a mãe americana de origens italianas, o pai italiano, pedreiro, que bebia, jogava e vivia metido em brigas. Tanto Bandini quanto Fante só pensava em deixar para trás aquela cidade no meio de lugar nenhum e se mandar para a Califórnia.
Hoje, a cidade apelidada de “República Popular de Boulder” e “Berkeley das Rochosas” privilegia o transporte público e as ciclovias, tenta ressuscitar o bonde, torce o nariz para as grandes cadeias de lojas e prestigia os negócios locais, como a livraria Boulder Bookstore, de propriedade de David Bolduc e sua mulher brasileira Helena Boulduc. Há dois campi importantes, o da Universidade do Colorado e o da Naropa, universidade budista fundada pelo controverso monge Chögyam Trungpa e cujo departamento de poesia contava, em suas origens, com Allen Ginsberg e John Cage.
Qualquer um que chega a Boulder sente no ar esse clima meio pós-hippie. A alguns, ele incomoda. Como escreveu Marc Peruzzi num artigo para o Outside online, o Dunkin’ Donuts fechou as portas, mas o bar de oxigênio vizinho à livraria GLS parece estar indo bem. Não sei se seria o preferido de John Fante, provavelmente não. Arturo Bandini até poderia encontrar em Boulder, hoje, uma Camilla Lopez servindo café ruim com sandálias velhas nos pés, como encontrou em Los Angeles. Mas o cenário não seria o mesmo.
Eu e Gabriel, que por acaso viemos parar nestas bandas, nos unimos ao público do engolidor de fogo na Pearl Street, depois nos sentamos no café Bookends, anexo à Boulder Bookstore de David e Helena. Gabriel estava mais interessado no livro do que em mim. Pedi um café e abri o meu John Fante, que não estava ali por acaso: naquela semana, no dia 8 de abril de 2009, comemorava-se o centenário de seu nascimento, e era por causa disso que tinha decidido me aventurar por 1933 foi um ano ruim.
Li o primeiro parágrafo, que traduzo com modéstia: “Foi um inverno ruim, o de 1933. Andando com dificuldade para casa naquela noite em meio a labaredas de neve, os dedos dos pés queimando, as orelhas pegando fogo, a neve rodopiando ao meu redor como um bando de freiras zangadas, imobilizei-me no meu caminho. Tinha chegado o momento de fazer um balanço da situação. Com bom ou mau tempo, certas forças no mundo estavam em ação tentando me destruir”.
Fante até hoje é um autor que tem nos Estados Unidos muito menos reconhecimento do que o merecido. Boulder, a cidade que ele deixou para trás, na semana do centenário o intitulava “um escritor de Boulder” e organizava leituras de sua obra, enquanto o Los Angeles Times publicava um artigo declarando que “para muitos, John Fante é o santo padroeiro da literatura de Los Angeles”. Há alguns anos, o New York Times já havia decretado: “ou você desconhece a obra de John Fante ou a acha inesquecível. Ele não é o tipo de autor que deixa espaço para algo intermediário”.
Depois de algumas páginas, notei que uma menininha me espiava da janela. Olhei para ela e acenei. Ela entrou e se aproximou da nossa mesa. Gabriel fingiu que não via. Ela o ignorou também. O que você está lendo, ela me perguntou. 1933 foi um ano ruim, eu disse. Se passa aqui em Boulder. Hm, ela respondeu, desinteressada. Perguntou se aquela bolsa no chão era minha e me contou que ia comer pizza com a mãe. Batemos papo durante alguns minutos. Perguntei a sua idade. Cinco anos, ela mostrou com a mão, e não perguntou a minha. Dali a pouco sua mãe a chamava. Ela se despediu de mim dizendo I love you. Gabriel levantou os olhos do livro, riu e sacudiu a cabeça.
Coisas de Boulder. Não, definitivamente nem hoje seria a cidade preferida de John Fante. Mas talvez ele não saísse daqui correndo, como saiu nos anos vinte. Na semana do centenário de seu nascimento não havia labaredas de neve pela rua, o fim do inverno estava tranqüilo e quase quente. Mas como as coisas podem mudar rápido por aqui, nesse sentido, a meteorologia previa mais uma nevasca para a semana seguinte. Difícil de acreditar, naquela tarde de engolidores de fogo pelas ruas. Mas quando eu visse a neve rodopiando ao meu redor como um bando de freiras zangadas me lembraria de Fante mais uma vez. Sem achar, no entanto, que devia fazer um balanço da situação. E sem nenhuma vontade de me mandar para Los Angeles.