Peregrinações

A descoberta de uma poeta no silêncio da catedral, longe da algaravia dos turistas, perto da mãe
A poeta Chantal Maillard. Foto: Daniel Mordzinski
01/08/2009

Faz alguns anos que me acompanha na memória este trecho da poeta espanhola Chantal Maillard, uma das vozes poéticas contemporâneas que mais me interessam: “Há lugares desertos onde os olhos não podem navegar. Quem se detém neles detém o universo. Há lugares desertos que cumprem a função de ponte. Quem se detém neles dificulta o passo do universo”.

Li este pequeno trecho, escrito originalmente em espanhol, no Museo das Peregrinacións, em Santiago de Compostela, traduzido para o galego. Ele ilustrava a exposição de fotografias Benarés Onde a Vía Láctea se fíxo río, de Luis Baylón. O ano era 2005.

Em Compostela, há séculos rota de peregrinos, a exposição registrava outro desses destinos. Guardo ainda a filipeta com o texto, em galego, como convém: “Benarés é, sen dúbida ningunha, unha das cidades de peregrinación máis emblemáticas do mundo. Tamén se considera a cidade da India que mellor representa este in-menso país, porque nela se reflicte toda a diversidade deste vasto espazo coñecido tamén xeograficamente como subcontinente asiático ou subcontinente índio. Unha diversidade que se desprende fundamentalmente da multiplicidade de linguas, de etnias e de relixions”.

Eu ia a Compostela a convite do 8° Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. E acho curioso ter conhecido a obra dessa espanhola de origem belga ali na Galícia graças a uma exposição sobre a Índia, ainda que em sua vida e em sua obra esse seja um país importante.

Conheci também, nessa viagem, a poesia de Carlos Quiroga, ele sim galego, que escreveu: “há lugares miragem/ onde a pedra é de água/ e proliferam algas nas paredes”. E noutro lugar gritou, com brilhantismo, num poema-paráfrase à canção Língua, de Caetano Veloso: “Sejamos a censura da censura do galego”. (…) “Galego que ensinam isola que mata./ Livros, discos, vídeos de fala irmá,/ deixem que eu chegue, que vivam,/ e deixem que eu diga, que pense, que fale”.

Ali contei ao Luiz Ruffato: Santiago de Compostela é a única cidade que minha mãe gostaria de conhecer. Quando soube que eu vinha, sentiu-se feliz porque eu ia visitar aquele lugar dos seus sonhos. Minha mãe já não viaja.

O Luiz ficou com aquilo na cabeça. Mais tarde me segredou a sua emoção, e eu segredei que fiquei emocionada em retrospecto, e emocionada com a emoção dele. O escritor timorense Luis Cardoso, que nos acompanhava, lamentou que a Catedral, em tese um lugar de silêncio e de culto, estivesse entregue ao exagero turístico, às hordas de filmadoras e máquinas fotográficas, às visitas ruidosas. Como a gente sabe que acontece, mesmo. Luiz Ruffato deu a receita: venha de manhã cedo, quando os turistas ainda não acordaram.

E eu, apostando na sabedoria mineira do Luiz, fui. Sozinha, cedo de manhã, caminhei por ruas que dormiam. Minha mãe ia comigo, nos olhos, e eu dizia: vou te levar pra conhecer a Catedral de Santiago de Compostela — que estava mesmo quase vazia àquelas horas. Acontecia uma missa de verdade, para alguns fiéis que não tinham ares de turistas. Cantava-se. Depois contei ao Luiz que ele tinha razão. Que a Catedral existia. E que não era aquele amontoado humano das horas mais disputadas do dia.

Ao voltar de Compostela, fui procurar alguma coisa daquela poeta que tinha conhecido via Benares, e que rapidamente se tornou uma de minhas favoritas. Chantal Maillard nasceu em Bruxelas em 1951 e se mudou para a Espanha ainda pequena, com a família, em pleno franquismo. Estudou filosofia e religiões orientais na Universidade de Málaga, onde ensina hoje, e de Varanasi (nome oficial de Benares na atualidade), na Índia. Atravessou a experiência sem nome do suicídio de um filho. É filósofa, ensaísta e poeta, e entre os reconhecimentos que sua obra recebeu está o Prêmio Nacional de Poesia na Espanha, em 2004 — sobre o qual afirmou, numa entrevista: “Lo que importa es que quienes han logrado vislumbrar algo que pueda servirles a otros para sobrellevar su existencia puedan ser escuchados. No creo que sea mi caso, y no sé si los premios son el mejor camino para que esto se dé”.

Sem nunca tê-la conhecido pessoalmente, ganhei de presente de um amigo comum um exemplar autografado do livro Matar a Platón, onde ela está “seca e despojada” como disse o jornal El País. O livro é um longo fio composto de vários poemas, partindo todos de um mesmo evento: um homem que é esmagado (“aplastado”, em espanhol) de encontro a um muro. “Un hombre es aplastado./ En este instante./ Ahora.” Mas não se pense que é um livro do qual escorrem vísceras e sangue. Na verdade é um livro sobre um acontecimento, sobre o instante, sem camuflagens, em torno do qual se forma uma rede de reações, de observações, de horror e indiferença, de vida.

Penso nos lugares desertos onde os olhos não podem navegar. Nos lugares miragem de Carlos Quiroga, onde a pedra é água. Os lugares desertos e os lugares miragem: a Catedral de Santiago de Compostela na hora mais movimentada do dia. A Catedral no silêncio da manhã, em companhia da minha mãe, que não estava ali. O autógrafo da autora espanhola que veio através de um amigo sul-americano. A cidade de Benares/Varanasi (confluência dos rios Varuna e Asi), que não conheço. Compostela dormindo, de ressaca. A escrita do instante. Chantal Maillard: “El acontecimiento se da siempre y cuando haya alguien lo suficientemente alerta como para que una pequeña nada le importe y haga impacto”.

Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

Rascunho