O escritor americano Edward Abbey começa com estas palavras seu livro de não-ficção mais célebre, Desert solitaire, sobre a temporada que passou trabalhando no Parque Nacional de Arches, Utah, oeste dos Estados Unidos: “Este é o lugar mais bonito da Terra”. Mas prossegue, afirmando que “há muitos lugares assim”, e que cada um de nós leva consigo a imagem do lugar ideal, do único e verdadeiro lar, que pode existir ou não, ter sido visitado ou não.
Ele lista possibilidades: uma casa flutuante na Caxemira, uma vista para a Atlantic Avenue no Brooklyn, uma viela na zona portuária de Hoboken, Nova Jérsei, “ou talvez até mesmo, para aqueles de sensibilidade menos exigente, o mundo visto de um apartamento confortável em meio ao nevoeiro esfumaçado e sedoso de Manhattan, Chicago, Paris, Tóquio, Rio ou Roma”. Mas diz que, para ele, esse lugar fica bem ali.
Não sei se concordo com Abbey quando ele afirma a existência desse curinga chamado lar, situado ou situável em algum lugar do mundo físico ou imaginário: essa trincheira de identificações onde somos capazes de nos proteger da intromissão do estranho, do susto do desconhecido — onde encontramos o nosso conforto, tenha ele a cara que tiver.
Abro o livro Questions of travel, de Caren Kaplan, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley. Ela sugere: “Muitos de nós têm localidades no plural”. Ou seja, lares no plural. O que pode, penso, equivaler a não ter lar nenhum. Ou a ter pedaços de lares meio que esfacelados, partes de um todo idealizado que, se reunidas, não conseguem completá-lo.
As pessoas viajam por diferentes motivos. Algumas voluntariamente, outras por necessidade. Algumas com prazer, outras não. Nesse estudo sobre os discursos relacionados à viagem e ao deslocamento, Kaplan lembra algo fundamental: “O deslocamento não é universalmente disponível ou desejável para muitos, tampouco é experimentado de modo uniforme”.
Alguns viajantes são turistas, outros são exilados, imigrantes, exploradores, expatriados, nômades. Viajantes que fogem de guerra, genocídio, perseguição política, que buscam melhores oportunidades de vida mesmo que isso equivalha à ilegalidade. Há os aventureiros e há aqueles que, como diz Edward Abbey, chegam ao centro de visitantes de um parque nacional como Arches perguntando: a) onde fica o banheiro, b) quanto tempo vai levar para visitar aquilo ali e c) onde fica a máquina de coca-cola.
No poema que empresta o título ao livro de Caren Kaplan, Elizabeth Bishop escreveu (e traduzo de modo canhestro): “Continente, cidade, país, sociedade:/ a escolha nunca é ampla e nunca é livre./ E aqui, ou ali… Não. Deveríamos ter ficado em/ casa, onde quer que seja isso?”
(A palavra “livre” do segundo verso, “free” em inglês, poderia ainda ser traduzida com propriedade por “gratuita”).
Kaplan comenta: “Não posso responder à pergunta (…) de Bishop ficando ‘quieta no meu canto’ ou fixando minha localidade ou prometendo não deixar minhas fronteiras nacionais. Não há necessariamente um espaço pré-originário onde ficar depois da expansão imperialista moderna”.
Sem pensar em nada disso — em nada disso a não ser no papel pernicioso do turismo naquela natureza crua que ele considerava “o lugar mais bonito da terra” — Edward Abbey se instalou no deserto, entre as rochas do sudeste de Utah e seus arcos monumentais. Eram os anos cinqüenta, e ele aceitara emprego como guarda em Arches. Ainda não havia asfalto atravessando o parque. Os companheiros de Abbey eram ratos, cervos, cobras e o eventual turista intrépido, sem medo das estradas de terra e em busca do silêncio e da solidão em torno daqueles áridos gigantes de pedra. Uma vez por semana ele ia a Moab, a cidade mais próxima, fazer compras e tomar cerveja aguada — numa cidade de mórmons, as bebidas fortes eram proibidas.
Li sobre o deserto de Abbey bem antes de vencer seiscentos quilômetros de estrada desde o estado vizinho do Colorado e colocar os olhos e os pés lá. Um “mar de deserto”, como ele escreveu, que se estende e se estende e se estende. No verão, o sol feroz e o calor tornam quase insuportável o percurso das trilhas que, longe dos estacionamentos onde se enfileiram carros, trailers e um par de ônibus de turismo, dão um vislumbre do sentimento real do lugar. Um mar de deserto.
Assim é quando você se afasta da tal estrada pavimentada que Abbey temia. Perto dela, nas trilhas mais curtas, aglomera-se de fato um monte de gente falando alto em muitas línguas — francês, italiano, alemão, além do inglês, entre bonés e viseiras, garrafas d’água, equipamentos fotográficos e filmadoras.
Eu pressupunha o silêncio, ali, mas é preciso procurá-lo debaixo do sol a pino, fugindo do asfalto. Em algum momento ele chega. Num arco de pedra escondido entre paredões de pedra, sobre dunas de areia. No final de uma trilha bordejada de cactos, depois de andar, andar e andar mais um pouco. No suor que seca sobre o corpo. Chega também no vento que uiva e cala o resto do mundo, se você subir até o ponto certo, até a vertigem. E é possível entender ao menos um pouco do que Abbey sentiu ao afirmar: “Este é o lugar mais bonito da terra”.
À saída do parque, a loja oferece camisetas, canecas, canetas, cartões, livros. Entre esses últimos, claro, há várias edições de Desert solitaire. Penso na triste ironia de ver ali o livro de Edward Abbey, que era radicalmente contra o turismo industrial nos parques nacionais americanos, considerava as estradas de asfalto responsáveis pela profanação de locais como o Grand Canyon e temia pelo futuro de Arches.
Abbey, o “anarquista do deserto”, morreu em 1989. Acusado por alguns de eco-terrorismo, ele foi fichado pelo FBI, mas também irritava os ambientalistas e apoiava grupos conservadores como a National Rifle Association. Seja como for, e mesmo que o turismo industrial morda hoje os calcanhares do Parque Nacional de Arches, o local sobre o qual ele escreveu ainda está lá. Alguns visitantes querem de fato saber onde fica a máquina de coca-cola. Mas outros não.