No Central Park, Jesus Cristo se encontra com John Lennon. Os dois conversam em versos japoneses, a bordo de um poema chamado Para os vegetarianos, de autoria de Inuo Taguchi. Esse brilhante poeta será trazido, entre vários outros, até o leitor brasileiro na importante antologia bilíngue Paisagem urbana e poesia japonesa contemporânea (Cosac Naify), a ser lançada em breve. A antologia foi organizada por Raquel Abi-Sâmara, Sadami Suzuki e Leith Morton, e resulta do ano que Raquel passou como pesquisadora em Kyoto.
Entre os poetas presentes na antologia, Inuo (nom de plume que significa homem-cachorro) Taguchi é uma das melhores surpresas. Nascido em 1967 em Tóquio e formado numa universidade americana, ele mistura em sua poesia Lênin e os Beach Boys, Jesus Cristo, o Super-homem em sua cadeira de rodas, Gary Snyder, Newton e John Lennon, com leveza, precisão e doses bem equilibradas de humor e tristeza. É uma poesia que, como a prosa de Haruki Murakami, não ecoa o Japão tradicional e seus códigos culturais, o “mundo flutuante” de Mishima ou Kawabata. Mas Inuo parece, por outro lado, livre do insistente eu das narrativas de Murakami. Sua poesia é transparente, a-egóica, e através dela transparece o mundo.
Ele começou a publicar em 1995. Com seu segundo livro, General Moo, ganhou o prestigioso prêmio Takami Jyun de literatura. Para os vegetarianos faz parte do livro Armadillogic, de 2002. Reproduzo a tradução de Diogo Kaupatez, feita para a antologia de Abi-Sâmara, Suzuki e Morton:
É, John Lennon morreu
parece que o arroz integral e a comida vegetariana não caíram bem
falou Jesus, sentado num banco do parque
não é nada disso, John Lennon foi assassinado
disse-lhe, mas interrompi a frase no meio
porque no New York Times aberto diante de Jesus
certamente havia algum artigo referendando o que afirmara
Noite passada, ao entrar no apartamento
percebi uma mensagem do John na secretária eletrônica
um seminário de 4 dias e 3 noites em Atami, sobre comida natural
entusiasmado, convidava-me a participar
se as pessoas tornam-se obcecadas com algo
esquecem até mesmo que estão mortas?
não sei se foram as verduras, mas, enfim, é uma história deprimente
Tagarela, Jesus desembrulhava o sanduíche de peru para viagem/
sobre os joelhos
quando vivia na Palestina, era um cara persistente
agora, depois de vir para Manhattan, perdi completamente o tom
seria porque como muita batata frita?
eu os proíbo, porém meus discípulos
são assíduos freqüentadores do McDonald’s
Sempre que discutia com John, eu perdia
nessas ocasiões, meus discípulos me olhavam inquietos
certa feita, Buda me confidenciou: comida pobre
é nosso carma
John ansiava por comer
sozinho, todo o arroz integral do mundo
Me pego imaginando John abarrotando o carrinho com arroz integral
no mercadinho oriental do céu
e então, parado no caixa
John mostraria e língua e murmuraria: vou te ser sincero
acho isso de saúde uma coisa ridícula, afinal de contas
mortos são os mais saudáveis que existem
O céu do Central Park é infinitamente azul
em verdade vos digo, sob tal céu
se recebesse um telefonema do falecido John
não estranharia em nada, pensei com serenidade
E, quando retornei ao quarto, não é que
havia uma mensagem do John para mim?
o falecido assim dizia:
O oposto de comer não é não-comer
o oposto de comer é rezar
quando rezamos, de que modo seja,
não conseguimos comer nada.
Quando viajei em busca do Japão, em 2006, foi por motivos bastante diferentes dos de Raquel Abi-Sâmara. Ela procurava a poesia ultra-contemporânea e urbana de Inuo Taguchi ou do performático Gôzô Yoshimasu, e a rosa de Hiroshima nos versos de Kurihara Sadako. Eu estava atrás dos vestígios de Matsuo Bashô, o poeta do século 17 — alguma coisa localizável, talvez, na solidão dos campos de arroz ao redor da Rakushisha, a Cabana dos Caquis Caídos, que hospedou o poeta perto do fim da sua vida, nos arredores de Kyoto. E onde, aliás, Raquel também esteve, entre bicicletas e sorvetes de chá verde, pois Inuo não invalida Bashô. E vice-versa.
Parte do Japão de Bashô, aquele que eu fui buscar, já não existe, como eu sabia que não existia. Há memórias, traços, evocações. Uma cabana reconstruída em Kyoto. Uma casinha à beira do rio Sumida, em Tóquio, onde se acredita (apenas isso) que o poeta tenha vivido. O local foi transformado no Museu Bashô, e de dentro de uma réplica de seu mundo, no jardim, contempla-se a silhueta dos arranha-céus de Tóquio. No Museu Bashô, você pode comprar um pingente onde o poeta é representado como um personagem de mangá (comprei um, mas quebrou).
Parte do Japão que Raquel Abi-Sâmara foi buscar, num certo sentido, é também um Japão que não existe, pois poderia ser qualquer lugar — isso é particularmente verdadeiro no caso do poema ou dos poemas de Inuo Taguchi.
Entre uma coisa e outra, a atemporalidade e a universalidade da literatura, que nos move e nos comove. Às vezes ela é o verso em dezessete sílabas do poeta clássico japonês. Às vezes é o verso pop do poeta da aldeia global, onde John Lennon deixa recados numa secretária eletrônica depois de morto e Jesus Cristo lê o New York Times no Central Park enquanto come um sanduíche de peito de peru.