Projeções atravessam a cena, compondo um gramado, compondo gotas de chuva em poças circulares, compondo até mesmo nuvens corrediças num céu estampado em lençóis brancos ou o fogo lambendo cortinas improvisadas. O resto do cenário inclui uma porta e uma janela que deslizam para cá, para lá (e às vezes viram tela também), uma máquina de lavar, uma mesa e um banco suspensos e, sobretudo, uma imensa parede feita de prateleiras e potes de vidro com recheios variados e misteriosos. Às vezes luzes vindas de trás vazam esse mundo translúcido, de organização frágil. Portas e janelas se abrem nele, como alçapões.
Lá fora é uma noite de setembro, a poucos dias do outono na cidade de Denver, cujo céu sempre me faz pensar no Planalto Central — não foi diferente hoje, as labaredas no céu amarelo irmãs do mundo elusivo de Noah Summers, na peça de teatro e nas páginas do livro. Desde o início sabemos que ele e o fogo têm algo em comum.
Noah Summers é o personagem que rege o romance Indiana, Indiana, do autor americano Laird Hunt (Coffee House Press), e o personagem que rege a peça Indiana, Indiana, na adaptação feita pela Buntport Theater Company, de Denver.
Recentemente decidi começar a ler a obra de Laird, autor dos contos de The Paris stories (2000) e de quatro romances, The impossibly (2001), Indiana, Indiana (2003), The exquisite (2006) e Ray of the star (2009). Ele vive hoje no Colorado e ensina escrita criativa na Universidade de Denver (assim como sua mulher, a poeta Eleni Sikelianos, autora do inesquecível The California Poem, um livro que mais do que lido precisa ser visitado). Na escolha da minha primeira leitura da prosa de Laird, foram as resenhas de Indiana, Indiana que me apontaram o caminho: apareciam adjetivos tentadores como “estranho”, “obscuro”, “lírico”, “filosófico”, “misterioso”.
Então, numa espécie de confluência estranha, obscura, lírica, filosófica e misteriosa, na mesma semana em que esse livro de 2003 ia, com seis anos de atraso, para a minha mesa de cabeceira, a Buntport estreava sua adaptação teatral, a meia hora da minha casa.
A dúvida apareceu, como era de se esperar: ver primeiro a peça, e portanto vê-la autônoma, sem a eficácia prévia da leitura, ou ler primeiro o livro, e portanto lê-lo incólume, sem a interferência prévia da adaptação? A escolha foi acho que a mais acertada. Das duzentas páginas do romance de Laird, li talvez a metade, e deixei a outra metade para depois do teatro.
O romance, como a peça, como a memória de Noah Summers, e como a sua vida depois de tudo (depois de uma mulher chamada Opal, e do fogo), é fragmentário. O quando é elusivo. O onde poderia ser qualquer pequena localidade rural nos Estados Unidos. Mas é, tecnicamente, no estado de Indiana.
Alguma coisa, percebemos, não vai muito bem com Noah — o velho Noah, conforme nos anuncia no início da peça o jovem ator que o incorpora vestindo uma máscara.
Alguma coisa não vai muito bem com o velho Noah e isso tem a ver com o fogo, com a memória, com a morte, com seus pais, com a autoridade estranha e bissexta do xerife e do pastor, e sobretudo com uma mulher chamada Opal. Sua mulher. De quem ele guarda cartas estranhas, obscuras, líricas, filosóficas, misteriosas.
No palco do Buntport Theater, a memória e a vida de Noah passam em projeções, em flashes, em lampejos desarticulados, embaralhados. Guardam-se em potes aleatórios de vidro numa estante monumental.
Nas páginas do romance, vêm em fragmentos: passado, presente, cartas de Opal sempre assinadas “Love, Opal”. Como esta: “Aqui, são quatro horas. Hoje eles nos levaram num passeio de ônibus. Dirigiram até o alto de um morro e nos deixaram olhar. O homem que tinha construído o morro estava ali e disse que ficaria feliz em responder a qualquer pergunta sobre o morro. Perguntei-lhe se ele achava que o morro podia pegar fogo e ele disse que achava que não”.
Noah e Opal passaram um mês e dez dias juntos até que o fogo se interpôs na vida deles e levou Opal a um lugar onde lhe ministravam a “eletricidade” e onde ela precisava pensar em coisas bonitas. O fogo não era uma coisa bonita. Cortinas eram uma coisa bonita. Cortinas pegando fogo não eram uma coisa bonita.
E tudo o que Noah queria era ela, sua mulher, sua única mulher, de volta. Queria tirá-la de lá, daquele lugar estranho onde lhe ministravam a “eletricidade”. Mas acontece que ele também não dava ao mundo o que esperavam dele, também não se comportava como uma história com começo, meio, fim e sentido íntegro. Por exemplo: no único trabalho que teve, como carteiro, ele saía pelos campos com a correspondência dos outros e pensava que isso era o bastante — que não era preciso efetivamente entregar as cartas.
A certa altura, um homem diz a Noah que Indiana é o melhor estado do país, e Noah lhe pergunta por quê. “Não sei. É a nossa casa. É onde estamos encalhados. Seja como for, soa bem, não?”
Indiana, diz Noah.
Indiana, diz o homem.
Lá fora, é o Colorado. Onde o Teatro Buntport é um pequeno nicho de resistência: uma trupe de seis pessoas que escreve e produz todos os seus espetáculos, oferecendo-os ao público por preços acessíveis e com o slogan: “o bom teatro não precisa ser caro”. E defendendo, numa espécie de manifesto, a arte local. Que não precisa ser um tubo de ensaio a caminho de algo “maior” e “melhor”, segundo eles, mas bastar a si mesma. A casa cheia com lista de espera, nesta noite de quase outono, faz pensar que têm razão.
Lá fora é o Colorado, e uma noite de quase outono, e o fogo estampado no céu já deu lugar ao escuro. Indiana fica longe, lá na beirada sul do Lago Michigan. Mas Indiana fica perto — Indiana poderia ser aqui no Colorado ou, feitas as devidas conversões, em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro ou no Paraná. Como toda boa literatura, o belíssimo romance de Laird Hunt, seu “estranho”, “obscuro”, “lírico”, “filosófico”, “misterioso” romance, é universal naquilo que tem de mais circunstancial. Indiana, como o sertão, fica em toda parte. E viver é mesmo muito, muito perigoso.