Não se espere de Conhecimento, ignorância, mistério, de Edgar Morin, qualquer tipo de resposta para a aventura humana em nosso planeta perdido em um sistema solar periférico. A proposta do livro está cifrada na enumeração do título, que equipara os termos, sem juntá-los. O conhecimento divide espaço com a ignorância (no sentido amplo, de desconhecer o nosso destino) e com o mistério (algo aquém da compreensão racional). Livro de ensaio que dialoga com a ciência, este volume escrito em 2016 e publicado na França no ano seguinte, tem grande atualidade. Morin se vale dos conceitos da biologia para acompanhar o surgimento da vida, dotando tudo que vive, de uma planta a um vírus, de resquícios de consciência e de subjetividade, para desconstruir as certezas criadas pelas respostas religiosas do criacionismo, que nos devolveram ao início da Idade Média. Se não há uma explicação plausível para o destino da humanidade, caímos no engodo de crer em explicações místicas de nossa existência.
Não é incomum cientistas de formação sólida terminarem a trajetória como místicos vencidos pelo mistério. Morin, testemunha ocular do século 20, faz o elogio da curiosidade como forma de não entrar em armadilhas simplistas. Ele abre o ensaio com uma frase que é um programa intelectual: “Preservei as curiosidades da infância”. O interessante é que o substantivo curiosidade, geralmente usado no singular, aparece aqui no plural, para designar a permanente busca da compreensão, mesmo diante de seu mistério indevassável. As curiosidades não estão em uma época de certeza ou de descrença, a velhice, mas no período em que nasce nos seres humanos uma pulsão para o saber. Manter esta pulsão ao longo de toda a vida é recusar a simplificação, receita para a busca do “conhecimento complexo”, ponto fulcral da obra de Morin.
Se sabemos muito sobre como surgiu a vida no planeta, como surgem estrelas e planetas, ou seja, os princípios da ordem (que são, segundo o autor: gravitação, eletromagnetismo, interações nucleares fortes e interações nucleares fracas), não podemos ignorar que a desordem é uma força ativa, e vem do que ele chama de “agitação calorífica”. Resultado da ordem, a vida sofre uma ação corrosiva da desordem. Esta tensão caracteriza a vida humana e a existência dos planetas. Aceitar que somos produtos de ambas as energias é não recuar diante do final da vida no planeta que, o mais tardar, acontecerá com o apagamento do sol daqui a alguns bilhões de anos.
Indo de temas científicos a outros mais filosóficos, sem deixar de relatar episódios biográficos, o autor constrói uma reflexão que desarma os nossos medos em relação ao fim, ao mistério, ao infinito. Este processo é importante para que não se caia na letargia religiosa, que empurra o ser humano a uma solução divina, validando todos os processos sociais vigentes. O conteúdo revolucionário do livro, em uma época em que se fala em Terra Plana, está nesta explicação do processo de subjetivação da microvida, de sua mutação — representada pelas mutações recentes de muitos vírus — e de uma movimentação permanente do planeta, que acelera a sua extinção.
Abrir-se para o mistério infinito, sem muletas, aceitando o que é inexplicável, parece ser o caminho proposto por Morin. A fuga da ilusão criacionista se dá pelo reconhecimento do mistério como condição do humano. Ele fala de três mistérios principais: do inconsciente, do organismo e da identidade. Nesta parte do livro, há uma valorização do conhecimento pelo mistério — fora da ciência, da racionalidade, das explicações científicas. Ocorre uma mudança de chave e a ciência, que servia para tirar as certezas religiosas, sofre um enfraquecimento diante do potencial de conhecimento intuitivo, por analogia, por decifração. O humano, território das complexidades, se faz mais aberto para as descobertas não racionalizadas. Entre os vários estados de espírito que permitiriam este convívio com o mistério, porta para um outro tipo de saber, estão o êxtase e o transe poético.
Contra a ideia de uma ilusão criacionista e da inalcançável justificação lógica para o universo, ele localiza no cérebro humano o potencial de experimentação de um saber intraduzível e incontrolável fisicamente. O humano, assim, não aparece como uma máquina explicável, mas como uma antena em conexão com os mistérios.
Se neste ponto do livro, capítulo 7, Morin passa dos estudos científicos para as aptidões intuitivas do humano, no capítulo seguinte a viagem empreendida dos seres monocelulares para os seres humanos chega a ameaças dos tempos presentes, em que há uma hegemonia total da conjunção de ciência/técnica/economia. Note-se que é novamente uma tríade. O autor define estes valores frios como os motores que conduzem a Terra. É o momento pós-humano, em que o maior risco é a redução da humanidade a pequenas bolhas tecnológicas num planeta devastado, a caminho da destruição. Se a vida robótica já é possível, ela surge como um braço do poder absoluto da economia: “A hegemonia mundial da finança sobre as economias e os Estados provocou o reinado do lucro imediato, submetendo Estados-nações e o gênero humano a seu império”. Este mundo pós-humano, tanto pelo poder das finanças quanto pelo uso da ciência por parte de quem detém o mando financeiro, é o momento de risco que vivemos. Contra esta aceleração do fim do planeta enquanto espaço de humanidades, o autor termina o livro quase com um poema de afirmação dos atributos mais gratuitos da vida, para combater a frieza da ciência e de uma técnica sem ética. O final chega a ser ingênuo e um tanto cafona. Não é o desenvolvimento científico, que nos explica, o responsável pela melhoria de vida do planeta, este apenas piora tudo quando instrumentalizado pela economia, e não é também a crença num poder divino, e sim a reafirmação do “despertar da consciência e da força do amor”. A gratuidade do viver por viver, do querer-viver, é o que nos salvaria de uma tragédia comandada pelas finanças e pela técnica.
A mesma resposta, com a mesma ingenuidade, é dada por Ruth (Melanie Lynskey), personagem do estupendo Já não me sinto em casa nesse mundo, drama americano também de 2017, dirigido e escrito por Macon Blair. A jovem órfã e solitária, em crise, é desafiada quando a roubam. Com a ajuda de um vizinho acidental, Tony (Elijah Wood), e diante do descaso da polícia, que só aumenta o seu sentimento de desamparo, ela faz da recuperação dos pertences roubados, entre eles uma prataria familiar, uma saga existencial. Em meio ao sem sentido de tudo, e depois de muitas provações hilárias e macabras, ela pergunta a Tony: “Por que existimos?”. E o jovem responde com uma placidez que beira a idiotia: “Para sermos bons”. Não me parece haver projeto mais urgente do que este para vencermos este momento de barbárie pós-humana.