Um livro que ninguém leu

"Numa pequena cidade do grande mundo", de Judith Dantas Pimentel, é uma narrativa única por fazer do pequeno o centro da sua trajetória
Ilustração: Isadora Machado
01/12/2020

Nunca terminamos de conhecer a produção literária de um período. Há sempre grandes livros que passaram ao largo do mercado, em prejuízo para os leitores e para o que entendemos como literatura. Assim, mesmo morando em Ponta Grossa desde 1993, eu desconhecia um dos livros de narrativa testemunhal mais importantes publicados no Brasil, sequer sabia da existência de sua autora, uma professora que fez carreira no interior do Paraná e na capital. Foi, por isso, algo que me chegou como uma senha.

— Você já leu Numa pequena cidade do grande mundo, de Judith Dantas Pimentel? — me perguntou meu amigo Renato Van Wilpe Bach.

Como desconhecesse tanto a autora quanto o livro, não dei muito valor aos elogios. A tendência é que nos apeguemos de maneira mais telúrica a títulos locais. Não, não poderia haver uma obra assim em minha cidade.

O volume me chegou como presente do Renato e comecei a ler na mesma hora e não parei até terminar. Procurei em vão algo na internet. Uns poucos amigos começaram a busca de informações sobre a autora, que ainda são poucas.

Nascida em Ponta Grossa em 1913, foi professora e advogada, e morreu em Curitiba em 1989. Seu livro foi edição própria, com originais datilografados, o que o identifica ao começo dos anos 1970, pois não há indicação do ano de publicação. Pelos depoimentos, julga-se que tenha sido em 1971.

O único livro que se assemelha a esta obra em nossa literatura é Minha vida de menina (1942), de Helena Morley. Assim como nestas memórias clássicas, é o olhar infantil, da menina pobre, oriunda de uma família de imigrantes, que nos apresenta metonimicamente um universo. Este olhar desarmado, tanto do ponto de vista social quanto moral, permite que Judith reconstrua uma cidade que começava a se fazer moderna, a Ponta Grossa dos anos 1920. Há um conflito fundante na narrativa. A Chácara Dantas, onde ela morava com seus pais, irmãos e trabalhadores, é deixada pela família, que tenta o comércio no centro de Ponta Grossa, no Armazém Pingo Doce, e logo depois acontece o retorno à chácara, devido às decepções com a vida urbana. Da oposição destes dois espaços, campo versus cidade, nasce um deslocamento social que forma a menina. Como imigrantes, eles não pertencem à história da urbe, que comemoraria o primeiro centenário em 1923. Esta falta de pertencimento cria uma irmandade com todos os pobres, os excluídos, os de vida torta. Este amor pelas pessoas que sofrem é o que dá ao livro valor humano e literário. Uma menina olha os bem-postos indiferentes ao outro e se irmana com todos aqueles que partilham das dificuldades para construir uma nova história na cidade que atraía imigrantes por ser um entroncamento ferroviário, o mais importante do sul do país. Lugar mais de passagem do que de permanência, portanto.

Numa pequena cidade do grande mundo é um livro sobre perdas. Primeiro a autora relata o desenraizamento promovido pela mudança da chácara. A vida na cidade a coloca em contato com uma experiência mais rica do ponto de vista humano e cultural, mas também mais perversa. Depois, no retorno para a chácara tenta restaurar alguma inocência que já era impossível. E, por fim, a morte prematura do pai coloca termo àquele universo fronteiriço. O exílio é explorado em vários níveis. Desde a partida da Europa, cuja força telúrica ecoa nas práticas cotidianas da família, até a vida isolada no campo, que é superada pelo contato com a cultura via escola, e por fim a orfandade. Judith construiu um doloroso canto de amor e de perda, em que estão no centro figuras de uma existência breve e intensa.

Filha de um português que chegou à cidade para tentar mudar de vida, a família numerosa que tem no pai o grande exemplo de tolerância, de defesa dos fracos, inadequado portanto ao comércio, pois estava sempre ajudando as pessoas. O Pingo Doce só poderia mesmo ir à falência. Esta doçura é relatada em vários episódios. O pai forma o caráter de uma prole que passa por conflitos, como a fuga de um dos irmãos, depois que este faz um desfalque no armazém. Edith não quer falsificar a história familiar e com grande coragem fala das grandezas e misérias vividas.

Mas é pela parte da mãe que ela recebe a cultura que compõe suas referências espirituais. De origem espanhola, a mãe passa para os filhos a saudade da Espanha, canções, orações e histórias em espanhol. São raros os livros de descendentes de espanhóis, que chegaram a ser o segundo maior contingente de imigrantes europeus no Brasil, mas que se incorporaram rapidamente à vida nacional, não deixando muitos registros de sua luta de adaptação. Este é outro valor de Numa pequena cidade do grande mundo: registrar a trajetória de um grupo.

Mais valiosa, no entanto, é a quebra de hierarquia que as memórias de Judith Dantas Pimentel promovem. Seus personagens são periféricos e ela retrata uma cidade que não ficou registrada na história. Entre tantos episódios, como os da perversidade na escola, a trajetória de um farrista amado por todos, o amor de um dos moradores da chácara por Ana, uma funcionária doente e fora dos padrões de beleza, os meninos pobres que apanhavam do pai, as prostitutas do centro, Rosinha que apanhava em casa e logo morre, o menino pobre que explode junto com a fábrica de fogos de artifício, entre estes e outros episódios que dotam o livro de uma grandeza que só pode ser obtida por quem viveu em contato com os excluídos, destaco o episódio do menino cigano.

Como passava pela cidade um grupo de ciganos, estes sofreram a tragédia de perder uma criança. Surge uma comoção imensa. Querem dar um velório e um enterro dignos para o menino, que ficará para sempre sepultado neste ponto de parada. Não tinham onde velar o corpo, então a dona do bordel fecha o estabelecimento naquela noite para que sirva de casa aos ciganos. Pessoas que nunca entraram no bordel, gente de família, foram prestar homenagem ao menino. E, no dia seguinte, os soldados, os presos (soltos momentaneamente para isso) e as raparigas da Rosena fizeram o cortejo fúnebre. A cidade abraçou simbolicamente o morto e o acolheu em seu seio. Depois, os ciganos partiram em seus carroções, entoando hinos étnicos.

Esta história, uma das páginas mais belas e comoventes da literatura de testemunho no Brasil, é a própria metáfora do livro e da vida nômade dos imigrantes empurrados pela miséria, principalmente dos espanhóis, com sua sina itinerante, que iam deixando para trás os entes mortos. A maioria sem ter quem registrasse estes episódios, por ser uma população analfabeta.

Como professora e como memorialista, Judith Dantas Pimentel foi fiel àquelas pessoas com quem conviveu na infância. Numa pequena cidade do grande mundo é um livro único em nossa literatura, por fazer do pequeno o centro da sua trajetória.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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