Em uma de suas reflexões lapidares, Dalton Trevisan me disse que os maiores inimigos da literatura são os familiares e amigos dos escritores, que publicam postumamente textos descartados. Estávamos em uma livraria e folheávamos uma dessas obras arranjadas. Não me lembro de qual autor. Mas poderia ser de Clarice Lispector, que ganhou, depois de morta, uma obra paralela retirada de tudo quanto é canto. Dalton é um autor que promoveu uma modelagem autoral de sua bibliografia, tornando-a atual para evitar este tipo de salvamento literário. Sua coletânea mais recente — O beijo na nunca (Record, 2014) — é uma retomada de contos dispersos, vindos da longínqua década de 1940.
O autor de 93 anos quer zerar o seu passivo literário. Pois sabe que, raramente, estes livros nascidos mais do renome do autor do que de seu trabalho artístico são boa literatura. Dos grandes autores, apenas Kafka fugiu da irrelevância destas primeiras edições pós-morte. Porque havia publicado pouco embora escrevesse muito. Apesar da proibição expressa do autor ao amigo Max Brod, para que queimasse os seus originais, este os publicou e nos revelou a dimensão genial de Kafka. Na bibliografia de Eça de Queirós, a prateleira póstuma também tem valor. Mas não é a regra.
Compro desconfiado estes títulos nascidos à revelia da vontade de quem os escreveu. E os leio mais por dever de ofício do que buscando qualidade. Alguns podem me surpreender, como foi o caso de Claraboia (2011), o romance de estreia do jovem José Saramago, mantido inédito por descaso dos editores. A força bruta do romancista se manifesta em cada página desta narrativa experimental, escrita na onda do nouveau roman.
Movido talvez por este caso de leitura compensadora embarquei em O último caderno de Lanzarote: o diário do ano do Nobel (Companhia das Letras, 2018) e em seu apêndice editorial, o volume Um país levantado da alegria, de Ricardo Viel. Os dois livros marcam uma efeméride, a comemoração dos 20 anos de concessão do Nobel a Saramago.
O material agora publicado seria o volume VI dos deslumbrantes Cadernos de Lanzarote. Digo seria porque não se trata propriamente de uma obra escrita, muito menos de um diário. Pelos paratextos, que tentam explicar a não veiculação desta obra em vida, ficamos sabendo que o arquivo descansara nas escuridões do computador, onde o autor o esqueceu. Nenhum escritor “esquece” um livro, ainda mais em um período de grande exposição de mídia, em que há demanda para novas obras.
Um diário surge de reflexões acaloradas de episódios vividos. Para existir, precisa haver um fértil tempo interior, a partir do qual o escritor reelabora sua experiência. Só há diários íntimos quando há vida comentada. Opiniões sinceras sobre pessoas e episódios. O diário íntimo é inversamente proporcional à face exterior do autor. É a sua identidade profunda.
Nas primeiras entradas do ano de 1998, Saramago ainda consegue corresponder minimamente a este princípio constitutivo do gênero. Mas a agenda agitada, pré-Nobel, e principalmente depois, o afastam deste compromisso de escrita. E o que era para ser diário se arrasta por páginas colhidas aqui e ali. O autor tem consciência disso: “As mil andanças que me comeram o tempo no ano passado, sem esquecer o labirinto de Todos os nomes em que me perdi, tiveram como efeito atrasar-se o diário a um ponto tal que até este julho não fiz outra coisa que empurrá-lo, salvo consentir (era inevitável) que me metessem em andanças novas”. Pronto. Saramago percebeu que o projeto do diário tinha se esgotado. Ainda tenta manter o hábito de escrever no recolhimento de Lanzarote, no autoexílio de uma terra vulcânica.
Para isso, vale-se de alguns subterfúgios. Em vez de tomar notas pessoais, começa a transcrever artigos publicados na imprensa ou mesmo textos para apresentações e discursos. O diário se faz repositório de matérias circunstanciais. Tirando umas poucas páginas, ainda dentro da rubrica íntima, o resto é recolha de textos. A partir do meio do ano, este esfacelamento se agrava, e os diários se tornam mera agenda de compromissos, não ultrapassando cada entrada uma linha. Algumas enigmáticas, como esta de 17 de outubro: “Matosinhos. Fidel”. Saramago falou de Fidel em Matosinhos? Fidel esteve naquela cidade?
Há ainda nesta miscelânea entrevistas dadas no período. O que dota o volume de um valor meramente documental. Esta tendência para arquivar textos, que já se manifestara nos tomos anteriores, agora se torna procedimento padrão. O que põe a perder o sentido estrutural dos diários. Outra tendência é transcrever as cartas dos leitores, pois Saramago está no auge de sua popularidade. Chega mesmo a teorizar sobre isso: “na publicação de uma obra completa de um escritor deveria haver um volume ou mais com as cartas dos leitores”. Antecipando-se a isso, ele abriga as missivas mais significativas.
Saímos da leitura destes diários com uma sensação de que não há trabalho autoral nele. O projeto estava esgotado por falta das condições de reflexão silenciosa e desinteressada do autor, solicitado a todo momento para se manifestar. O próximo livro nesta linha seria O caderno (2009), reunião de textos de seu blog, no qual escrever e ser lido tinham continuidades temporais imediatas. O escritor produziu entradas que funcionavam mais como matéria jornalística, inviabilizando sua dedicação ao gênero intimista.
Assim, O último caderno de Lanzarote foi abandonado pelo autor, cônscio que estava de sua precariedade. Com ele, suspendem-se os recursos para este tipo de escrita, obrigando-o a tentar outras formas de intervenção. O Nobel vai se manifestar em artigos, discursos, entrevistas e em seu blog. O ensaísta vence o autor de diários: “Algumas vezes tenho dito que não sou romancista, que sou um ensaísta falhado que escreve romances porque não sabe escrever ensaios”. A leitura, 20 anos depois, deste projeto de livro nos revela apenas a sua inviabilidade literária. Falta alma aos comentários. Falta tempo para desenvolver análises da experiência interior. É que a fama funciona antes de tudo como construção externa.