Rubem Fonseca flagra um país pós-humano

Aos 93 anos, autor revela uma vitalidade literária invejável, buscando compreender o tempo presente pela ficção
Rubem Fonseca, autor do clássico “Feliz ano novo”
27/02/2019

Com o passar dos anos, o leitor contumaz vai experimentando um estado de solidão diferente. Os lançamentos de mestres contemporâneos que ele admirava eram motivo de alegria e de descoberta. Estes autores, acompanhados por décadas, vão morrendo ou parando de publicar, tornando raras as oportunidades para este prazer, o de acompanhar extensamente uma produção.

É esta a alegria que senti lendo os novos contos de Rubem Fonseca — em Carne crua —, autor cuja produção acompanho desde o início dos anos 1980. Aos 93 anos, ele revela uma vitalidade literária invejável, buscando compreender o tempo presente pela ficção, a partir de seus temas eternos, que retornam em ondas concêntricas, em uma obsessão que delimita uma estética literária e social.

Nesta coletânea, encontraremos uma repetição deliciosa de trajetórias já consagradas pelo autor. O habitante ou visitante das periferias sociais do Rio de Janeiro, garotas de programa, cafetões e cafetinas, escritores marginais, viciados, anões, solitários perturbados pela falta de sentido de tudo, ricos desorientados, enfim uma fauna de fodidos, mesmo quando com grana. Neste zoológico humano, uma figura se destaca. O matador de aluguel. Já apareceu em várias biografias imaginárias criadas pelo autor, mas agora ressurge na identidade de José, narrador de sua novela O seminarista (2009), no único conto longo de uma obra voltada à brevidade: Nada de novo. Tanto lá quanto aqui, a ideia de um matador impiedoso que tem uma formação religiosa funciona para alertar o leitor para armadilhas dos que mascateiam a bondade, principalmente em um momento histórico em que tantos vendilhões do templo se arvoram santos. Esta conexão entre o representante da ordem religiosa e o crime tem, portanto, uma função crítica atual.

Em Nada de novo, o matador sofre uma perturbação psicológica, pois quer encerrar sua vida criminosa, mas está sob as garras ocultas, e extremamente perigosas, de quem o contrata. Pertence, enquanto instrumento de eliminação humana, a um dono. O conto mostra não o criminoso frio, mas uma pessoa que vive sob medicação e que tem um único objetivo — matar quem o contrata. A busca do Despachante (o mandante) se dá em um clima de tensão, em que José corre o risco de matar inocentes ou de ser flagrado. O final do relato em primeira pessoa deixa explícito o lado perverso do mundo religioso.

Se José se liberta de seu contratante, outros personagens buscam esta profissão rentável no universo social caótico do Brasil, do qual o Rio se faz a face mais visível. Em O mundo vai mal, o personagem desempregado retoma a vida como matador, eliminando um Papai Noel, pessoa que estava na categoria dos que não podem ser mortas, dentro da ética destes assassinos, ao lado de mulheres, anões e crianças. Ou seja, a situação é pervertida mesmo a partir do código de conduta do bandido.

Estas repetições de trajetórias intensificam um mapa humano muito conhecido e estão simbolizadas na repetição do nome do narrador em primeira pessoa: José, prenome de Rubem Fonseca, embora usado não por motivação autobiográfica, mas por ser o mais repetido no mundo, cumprindo assim o papel de representar o homem comum e universal.

Nem só de retomadas, no entanto, se fazem as narrativas. O livro amplia o universo ficcional de Rubem Fonseca, acrescentando dados novos ou definindo melhor outros.

No primeiro caso, é visível uma aproximação estilística com nada mais nada menos do que Dalton Trevisan, outro mestre contemporâneo e companheiro geracional de Rubem Fonseca. Esta vizinhança de procedimentos literários sempre existiu na construção de contos que lembram, até no formato, poemas. Estava em textos como Âmbar gris, Corrente e Os inocentes, de Lúcia McCartney (1969). Dalton também usa o mesmo recurso há tempos, mas ele o intensificou nas últimas obras, a tal ponto de seus contos mínimos se confundirem com poemas. Em Carne crua, são três contos-poemas: Aparecida, Falsificado e O ser é breve. Assim, os dois mestres comungam de uma compreensão comum do que possa ser o conto dos tempos de hoje, de leituras breves de internet.

Outra proximidade, que faz com que Rubem Fonseca se chame Dalton Trevisan em alguns momentos, está na tendência para o conto-piada, uma história que se esgota na chave humorística, e que o curitibano transformou em território próprio, como forma de compreender o universo farsesco da província.

Para além destas convergências, Carne crua aprimora uma tendência contemporânea. Seus narradores estão a todo momento recorrendo a pesquisas na internet para definir as coisas de maneira prolixa. Embora uns ainda usem o dicionário impresso, a maioria confessa dependência em relação às consultas online. “De volta à internet (já disse que sou viciado em internet)”, diz José em Nada de novo. E aí vem a enxurrada de informações desnecessárias, que funcionam apenas para estabilizar psicologicamente estes seres ávidos pela cultura inútil. Temos definições em praticamente todos os contos, quebrando assim o fluxo narrativo que é muito rápido.

Estas alternâncias de ritmo, e de voz, pois o que vem das pesquisas é uma outra linguagem, criam desconforto no leitor, ao mesmo tempo em que denunciam o presente como um grande naufrágio do conhecimento enquanto possibilidade de transformação humana. O acesso a e o acúmulo de fatos, datas, nomes e explicações não produzem nenhum impacto no indivíduo. “Hoje, ninguém lê livros, todo mundo tem coisas melhores e mais fáceis para fazer, ver televisão, andar de carro, cheirar cocaína, fumar maconha, tomar uísque, falar no celular, mandar mensagens no WhatsApp, foder — foder não, ninguém mais fode, quem quer ter filho faz inseminação artificial. Foder saiu de moda.” Ler também saiu da moda. Isso porque o ser humano está se desprogramando para a leitura literária em um ritmo muito rápido.

Os contos de Carne crua apresentam uma percepção do mundo apocalítico, em que findam as instituições, a solidariedade entre seres vivos, a cultura humanizante e mesmo a realização pelo encontro sexual com o outro, cabendo a esta imensa população desorientada ir se entredevorando, animalescamente. Não por acaso, o conto que dá título ao volume é a história sobre um canibal, viciado em carne de gente e de animais de estimação.

Carne crua
Rubem Fonseca
Nova Fronteira
144 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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