Narrativa mais do escritor do que do homem, Jorge Amado: uma biografia, de Joselia Aguiar, revê a trajetória de um estilo da oralidade que teve no autor um dos principais representantes. Jorge Amado (1912-2001) descende diretamente de Lima Barreto (1881-1922), de quem herdou a temática popular expressa em linguagem idem. Mudam-se os cenários, do Rio para a Bahia, sem se perder a representação de um homem nacional marcadamente africano. Esta povoação popular da ficção contribuiu para elevar a autoestima nacional, em que o herói é alguém igual a todo mundo, portador de uma fala comum. A naturalização do código de rua é a principal intervenção estética do autor, que pagará o preço, tal como Lima Barreto, de ser tido como esteticamente relapso. O tipo de biografia, com viés de crítica literária, escolhido por Joselia recoloca o escritor no lugar literário que ele merece, como um mestre da língua portuguesa em sua versão brasileira.
Podemos dividir a trajetória do escritor em dois grandes movimentos, um centrífugo e outro centrípeto.
Joselia passa rapidamente pela infância de Jorge, demarcando como início de sua personalidade os afastamentos de casa — para estudar, trabalhar e fazer política. Fugir de casa funciona como recusa do mundo baiano em que se formou, com seus coronéis esmagando os mais fracos para concentrar o máximo de poder e renda. Esta Bahia dos donos de fazenda de cacau, grupo a que pertencia o próprio pai de Jorge, é um espaço que deve ser mudado. A primeira reação de quem não se ajusta ao meio é a da fuga, e o jovem formado nos conceitos socialistas encontra na militância uma forma de expressão literária. Participando da Academia dos Rebeldes, agremiação irreverente em Salvador, ele levará adiante o seu projeto de rebeldia em mais de um plano.
Os primeiros romances serão, por isso, marcadamente políticos, com muita força de protesto pela temática e pela linguagem que não ignora os termos mais escatológicos e assume um lugar de fala outro. Se prepondera o ativista sobre o escritor nestas primeiras obras, entre as quais se encontra até cordéis de louvação de um líder de esquerda (Luís Carlos Prestes), a mudança do registro narrativo se faz ferramenta social. É nesta fase que os preconceitos contra o autor nascem. A sua opção realista por um tipo de personagem que não poderia usar outras palavras que não as com força vivida dá a ele a fama de pornógrafo, o que servia para negar pela linguagem o conteúdo social de seus livros, sucessos imediatos pela densidade humana das trajetórias e da linguagem. Aos poucos, no entanto, estabiliza-se um código Jorge Amado, que atinge momentos altos em Jubiabá (1935) e Terras do Sem Fim (1943). Estamos diante do escritor “comunista”, embaixador literário da União Soviética.
Neste período, entre perseguições, prisões, exílios, retorno forçado ao nordeste, Jorge Amado muda o romance brasileiro, que ousa ser universalmente nacional, a partir dos dramas locais propostos no exterior como alteridades culturais. O Brasil surge como terra do sofrimento, da brutalidade do homem contra o homem, na onda neorrealista dos anos 30, que deixará marcas profundas na literatura portuguesa, à qual Jorge Amado é incorporado como autor-irmão. O Brasil ganha uma imagem internacional de país dos pobres, funcionando como publicidade da revolução necessária.
Mas artistas e ideologias não conseguem conviver por muito tempo. Nada há mais distante da propaganda do que a arte. E se a obra de Jorge Amado tinha uma funcionalidade política, principalmente seus livros mais fracos, o caráter artístico deles os afastava da cegueira esperada do propagandista. A biógrafa acompanha todas as andanças de Jorge, dentro e fora do Brasil, neste período formador em que viver a diáspora é ainda negar o país, no qual ele não se sente confortável ao mesmo tempo em que não consegue se desvincular dele. O autor se desdobra em jornalista, escrevendo para periódicos, interferindo na política, relegando a um segundo plano a sua arte. As andanças também servem para ele ir vendendo os direitos autorais a diversos países, construindo uma carreira internacional. Há neste período o Jorge Amado agente de Jorge Amado e de outros artistas.
Apesar da qualidade de alguns grandes romances desta fase, não seria incorreto dizer que Jorge Amado só se torna efetivamente quem ele era ao se pacificar com a Bahia. Aos poucos, com o crescente rendimento em direitos autorais, ele religa a sua biografia a Salvador, agora para dar uma infância baiana a seus filhos. É a volta ao cheiro e aos sabores da sua terra.
Não é à toa que o livro em que se dá esta retomada sensorial se chama Gabriela, cravo e canela (1958), demarcando o início da força centrípeta. Jorge cria outra relação com sua província. Já não a nega, tem olhos agora para todas as suas belezas. Do ponto de vista narrativo, ela aparece mais doce, mais arredondada, menos agressiva e pontiaguda. A linguagem escatológica cede espaço para o sensual, e de repente todos querem ser baianos depois da leitura de seus livros. A Bahia figura como capital de uma nacionalidade africana, atraindo adoradores estrangeiros. A pobreza não é um problema político a ser resolvido à força, e sim o berço de uma cultura que precisa ser mantida.
O foco, nesta fase, não é mais o herói em luta contra os poderosos, o drama dos espoliados, e sim a mulher local, fazendo do sexo extensão da culinária picante da região. Jorge Amado se fixa definitivamente em Salvador para cantar as belezas de seu povo. Esta volta, quando se estabelece na casa do Rio Vermelho, permite que ele reabite liricamente uma identidade de sua juventude. Deixa de ser um intelectual que luta pela causa do povo, para ser um artista junto com o povo.
Com Gabriela, cravo e canela, nasce também o escritor best-seller. Profissionalmente, Jorge não precisa mais trabalhar nem cavar a sobrevivência. Agora, é viver de forma plena a sua obra. É a fase da Academia Brasileira de Letras, do apartamento em Paris, da lista dos mais vendidos, da notoriedade internacional. E se dá assim a segunda negação de Jorge Amado. Criou-se o preconceito de que ele não era um grande escritor porque vendia muito. E a acusação recaía sobre um país exótico que não existia. E novamente a crítica ao estado de oralidade de sua escrita é o caminho para a recusa. Durante muitos anos, mesmo depois de sua morte, foi expulso da grande literatura, por parte da crítica e da universidade brasileira, enquanto fazia sucesso em outros países.
Rompendo com este preconceito, Joselia Aguiar faz um retrato de corpo inteiro do escritor que nos devolveu ao nosso idioma.