Uma das tradições do meio editorial é batizar a empresa responsável por publicar livros com o nome do editor, o que coloca no centro do processo de produção e de divulgação da literatura uma figura que, para além do negócio do livro, se faz curador do legado de um tempo. Na cena brasileira, notabilizou-se a carreira de José Olympio, cuja empresa promoveu uma valorização da literatura dos anos 1930 — sobre ele, há o belo livro-homenagem de José Mário Pereira — José Olympio, o editor e sua casa (Sextante, 2008). Muitos exemplos do uso deste recurso podem ser listados, tais como: a Francisco Alves, a Martins Fontes, a Editora Monteiro Lobato, a Livraria Schmidt Editora, do poeta Augusto Frederico Schmidt, ou ainda casas que usam mais de um nome, como a L&PM Editores, de Paulo de Almeida Lima e Ivan Pinheiro Machado. Ao destacar a pessoa, estas empresas se assumem como instâncias que exercem um gosto literário, um projeto cultural, um conceito de cultura. (Elas se fazem humanas em meio ao universo impessoal do business.)
Dentre estas casas, a mais identificada com a poesia contemporânea, tendo assumido a fragilidade comercial do gênero, foi, sem dúvida, a paulistana Massao Ohno, que agora tem o seu catálogo comentado em um álbum à altura do editor que primava por projetos gráficos ousados — Massao Ohno, editor, de José Armando Pereira da Silva. O autor levantou, em uma pesquisa minuciosa, o maior número de livros publicados pelo descendente de japoneses (1936-2010) que marcou época por uma atuação dionisíaca. Funcionando como um dicionário de autores publicados pelo poeta das artes gráficas, e organizados cronológica e tematicamente, o volume nos apresenta a trajetória em livros de um editor, pois o mais perfeito retrato de um editor é a montagem de um rosto cultural com suas principais publicações. (A verdadeira biografia de um editor é o seu catálogo.)
Ao analisarmos as publicações, fica visível um casamento constante entre poesia e artes em geral — o que cria para os volumes poeticamente editados uma ideia de peça única. Esta ideia de que o artesanato gráfico é uma continuação do conteúdo fez de Massao Ohno um mago editorial, que dava corpo a uma linguagem que se queria memorável, inadequada para as prateleiras convencionais das livrarias. Assim, talvez a sua contribuição mais visível para a história no livro no Brasil tenha sido incorporar novos e inovadores formatos, novas apresentações do suporte livro para a melhor leitura/contemplação da obra. Inventou e consolidou um formato próprio, por exemplo, para os volumes de haicais, modalidade de que se tornou o editor brasileiro por excelência, de acordo com a constatação de José Armando: “Ninguém editou tantos livros do gênero no Brasil como Massao Ohno. Chegou a eleger para esta poética um formato gráfico (15x15cm), que se tornou padrão”. (A poesia transcendia as palavras, fazendo-se poema objetual.)
Muitos autores hoje canônicos estiveram ligados ao editor, que cumpria um papel de agregador de tribos, de orientador de carreiras e de descobridor de talentos em botão. Esta função crítica do editor, que publica obras nas quais reconhece uma força literária maior do que a sua força de mercado, que na maioria das vezes é perto de zero, fez de Massao um mito no meio poético a partir dos anos 1960. Contra a poesia mal impressa da geração marginal, mimeografada e mal encadernada, os livros requintados de sua lavra. Esta aposta na qualidade de texto se manifestava em uma aposta artística no suporte. Com isso, a editora ergueu o padrão editorial do país, uma vez que não publicava para obter lucros com a venda, e sim para exercer a arte gráfica em uma situação de parceria com o autor. O nome mais constante na editora foi o de Hilda Hilst, com o principal de sua obra sob esta chancela. Outros poetas (pois embora tenha publicado obras diversas, Massao ficou como editor de poetas) acabaram identificados à editora: Roberto Piva, Cláudio Willer, Álvaro Alves de Faria, Lindolf Bell e Renata Pallottini.
Editar poetas não é tarefa fácil, porque a maioria usa uma linguagem que rompe com o leitor comum ao mesmo tempo em que sonha com o grande público. Mas Massao nunca desistiu desta fauna, porque como editor era um deles. O poeta dos editores. Ou, na definição de Carlos Felipe Moisés, outro autor da casa, o último dos editores românticos. Ou ainda, o editor boêmio, em eterno debate com seus editados. Uma figura que pertence a uma época de crença na arte requintada como principal arma contra os obscurantismos. (A estética como ética.)
Este seu ofício exercido amorosamente não deixava de ser fonte de conflito. Em entrevista a José Castello (Potlatch, a maldição de Hilda Hilst, em O Estado de S. Paulo de 30 de outubro de 1994), Hilda reclama com ironia: “O Massao edita meus livros, mas não os distribui. Tenho uma tese de que ele os coleciona embaixo da cama. Não me pergunte para quê. Parece que ele não quer que ninguém me leia. Jamais encontro meus livros nas livrarias”. Esta maldição é a mesma de outros poetas, cujo produto tem dificuldades de circular como mercadoria. Os volumes acabavam guardados pelo próprio editor, segundo depoimento de Ésio Macedo Ribeiro: “Muitos anos depois, visitei pela última vez Massao, querendo adquirir alguns exemplares de meu livro. […] Ele localizou alguns pacotes restantes […], não cobrou nada e ainda me presenteou com outros. Livros que eu julgava estarem esgotados, ali, em profusão, debaixo e em cima das mesas, dentro de estantes, armários e gavetas”. Esta biblioteca em boa parte retida, que não viajou rumo ao outro, agora está restaurada neste primoroso documento de uma vocação de artista que esteve a serviço da literatura.
Ao optar por este grupo de escritores, Massao pôde exercer livremente o seu papel de escultor em papel, que tratava cada exemplar como único, e que sabia previamente de sua inviabilidade financeira. Seu “defeito” como editor (não distribuir o livro) era sua qualidade principal, pois permitiu que materializasse títulos importantes para a manutenção da literatura em uma época em que a poesia tem cada vez menos valor no mercado — se é que algum dia teve algum, fora das horrorosas exceções.
Se não foi o editor ideal para os escritores, sempre ávidos por público, ocupa um lugar especial na defesa do livro impresso como uma experiência plena de leitura. Só por este seu valor merece um lugar na história contemporânea quem fez da edição um ato lúdico de criar. E aqui vale um dos versos do poema que Hilda Hilst lhe dedicou: “Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar”. Quem colocou no fazer livros toda a sua genialidade agora se fez um livro-colagem com suas principais obras. (Catálogo de uma editora / editor enquanto catálogo.)