O presente eterno

Ruy Espinheira Filho chega à condição de mestre contemporâneo com uma produção regular marcada pela unidade de voz
Ruy Espinheira Filho, autor de “Uma história do paraíso”
30/12/2019

Cabe aos poetas dizer a permanência. Nenhuma tarefa literária é mais nobre do que a de eternizar, em palavras que podem ser logo esquecidas, mas que permanecerão como uma luz secretamente acesa, aquilo que um dia existiu e não existe mais pela ordem natural das coisas. O poeta é por isso um ser que desrespeita a passagem do tempo, que escreve em uma temporalidade em suspensão, em confronto com a história. Se, na história, as pessoas ocupam tempo e lugar, na poesia elas desconhecem tais limitações.

Um dos mais importantes poetas da língua portuguesa, com uma obra extensa, e para muitos ainda inexistente, Ruy Espinheira Filho chega à condição de mestre contemporâneo com uma produção regular marcada pela unidade de voz. A cada livro, o poeta amplia o círculo de sua produção, sem mudanças bruscas ao gosto do inconstante agora estético. Ruy não quer contemporizar com os modismos em poesia porque sabe que a literatura é obsessão, nunca concessão.

Publicado pela Patuá, que virou a casa da poesia contemporânea, em edições limitadas, o poeta mantém a mesma sobriedade atemporal de linguagem de seus primeiros livros. Em 2015, saía Noite alta & outros poemas. No ano seguinte, Milênio & outros poemas. Já em 2018, Babilônia & outros poemas. Agora, ele reúne a produção de 2017 a 2019 em Uma história do paraíso & outros poemas. A segunda parte dos títulos, que se repete nas coletâneas citadas, demonstra esta continuidade de produção em que todas as peças fazem parte de uma obra que se alarga sem privilegiar um momento. Ruy Espinheira é um poeta de obra completa e não de livros publicados acidentalmente em determinados estilos ou sobre determinadas temáticas. Mas o todo também está, de forma metonímica, na parte. Assim, ler um de seus livros é reler a sua obra, porque cada uma das coletâneas pertence a um único e extenso tempo.

Nesta coletânea recente prepondera uma ideia de passado sempre presente. De maneira simbólica, o volume se abre com uma homenagem à biblioteca, repositório de tempos e de pessoas, que desaguam no eu que escreve. A biblioteca, no entanto, não é o paraíso. É apenas uma passagem até ele.

O paraíso é o momento vivido e vivificado pela memória. A lembrança do pai morto décadas atrás, longe de ser uma miragem, se faz o próprio ato de tocar a sua testa, quando de sua morte. O que passou, no entanto, é ainda uma possibilidade de futuro: “Mas um dia, quem sabe,/ talvez ele pergunte/ por que eu chorava e era tão fria/ a minha mão”. O episódio a princípio vinculado a um tempo perdido está pulsando a ponto de desencadear outras ações. É neste sentido de agoridade que Ruy constrói poemas ora mais narrativos, ora mais melódicos, sempre resgatando o que ficou retido em outras eras.

Em O presente, este tempo é uma oferta que transcende o fim das pessoas. Estas continuam existindo após o fim, o que cria um sentido de encontro transtemporal. O passado se presentifica, inaugurando uma idade sem limites precisos. “O que foi uma vez/ assim será: como o que foi uma vez/ (em todas as vezes que foi),/ sempre”. Poucos poetas acreditam tanto neste trabalho de memória da poesia, que cria um tempo aberto enquanto houver disponibilidade de recordação lírica.

O tom da poesia de Ruy é, por isso, calmo, propenso a estas fusões, em que o hoje não transcorre com rapidez, preferindo a lentidão ruminante das emoções. Se, por um lado, o poeta se assusta com a proximidade do fim, por outro, celebra o início de tudo, do qual dá um testemunho vivo. Isso promove a mistura de tempos e espaços: “Lá é aqui onde ainda estou”. O distante se confunde com o instante para o poeta que desfez as barreiras entre tempos. O presente vira permanente, mesmo que esteja perdido em uma dobra de lembrança de difícil acesso. Ser poeta é recordar os momentos de intensidade de ser. “Nada deslembro”, ele vai dizer em Soneto do sonho de novembro. Encharca-se das experiências para viver como sonho o que ficou no passado. Por isso não há morte para o poeta, este ser memorioso: “Os ausentes, tão presentes que penso neles,/ sempre”. Pode haver maior sobrevida aos que morreram?

E aí chegamos a um ponto em que conteúdo e forma, mais uma vez, se sobrepõem. A poesia do passado, seja da recordação de instantes e de amigos, seja de leituras transformadoras, exige uma energia conservadora. É nesta perspectiva que Ruy inova a poesia brasileira, em uma aposta em um verbo que conserva o passado como um tempo aberto. Para o poeta, não há distinção entre eras, tudo é agora. E isto é dito de forma explícita em mais de uma passagem do livro: “Jamais sepulto os meus mortos./ Nem os transformo em cinzas”. Mantidos vivos em instantes luminosos, os mortos não estão ausentes, e continuam atuando no interior de quem os recorda.

Fora do poema que dá título ao livro, em uma homenagem a Rubem Braga, encontra-se a melhor definição de paraíso: “Não poderia haver Paraíso melhor/ que o da sua infância”, porque é neste tempo, o mais afastado da morte, que as coisas eternas se manifestam na sua longa efemeridade. É uma poesia, esta a da memória, que solda momentos, junta pessoas que se foram, promove um encontro entre os que um dia conviveram, numa justaposição de tempos e espaços.

Neste projeto, vida real e sonho se confundem, num entrelaçamento propício não ao eterno retorno, mas ao eterno presente, o que nunca se deixa passar porque se encontra armazenado na sensibilidade de quem o viveu intensamente. O eu, nesta visão, é um sorvedouro de vivências, que se reencenam permanentemente: “porque tudo só irá mesmo morrer/ quando já não pudermos mais sonhar…”. As reticências no final do último verso do Soneto ao pai são símbolo desta continuidade para além dos fatos vividos, esta resiliência emotiva das experiências.

Nenhum poeta em língua portuguesa fez de seu verbo uma crença na memória como luz imorredoura e como defesa da existência enquanto receptáculo dos que se foram. Em uma linguagem na medida do humano, Ruy Espinheiro Filho redimensiona a vida como um filme que se repete enquanto agora.

 

 

Uma história do paraíso
Ruy Espinheira Filho
Patuá
xxx págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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