2 de janeiro de 2018
Escrever resenha é cada vez mais difícil para mim. Este é um gênero que necessita de continuidade. Quando interrompemos a produção, a estrutura textual internalizada se apaga. E só a prática nos devolve esta programação interior. Temos uma espécie de sistema muscular na mente e na sensibilidade. Sem fortalecê-lo, ninguém escreve bem. E, para isso, são necessários, como no campo físico, exercícios contínuos.
27 de janeiro de 2019
Leitura de Plataforma, deste demônio do contemporâneo. Poucos autores olham o agora com um desencanto tão grande. Michel Houellebecq não perdoa nenhuma ilusão. O romance é uma análise dos tempos de movimentações turísticas, que ele escancara como fúteis e racistas. Usa trechos de catálogos de viagem, contrastando esta divulgação com a experiência vivida.
30 de janeiro de 2019
Terminei de ler Plataforma, de Michel Houellebecq. A metáfora da plataforma aparece uma única vez, no final do livro. O narrador, que tem o mesmo nome do autor, se lembra de um momento da juventude em que subiu em uma torre de alta tensão e contemplou o abismo. Poderia se atirar dali, mas, por medo de virar uma massa informe, permanece olhando friamente para o nada. É esta postura à beira do fim que marca todo o livro. O sentimento de tédio com as putas que dão prazer. A realização vivida com a mulher amada, adepta da prostituição, é interrompida por uma tragédia e ele permanece gélido. Lembra muito o tom de O estrangeiro, de Camus. Só na Ásia o sobrevivente solitário do amor encontra o prazer provisório com as profissionais.
Um livro corajoso que enfrenta sem idealizações o discurso do politicamente correto, criando um narrador que fala de sua condição europeia e masculina, alguém que tem dinheiro para pagar por sexo. A leitura deste livro exige uma suspensão da moralidade e uma adesão emocional ao drama do homem que se sente o estrangeiro extremo.
26 de fevereiro de 2019
Comecei a ler Serotonina, de Michel Houellebecq. Bom.
7 de março de 2019
Houellebecq me convoca para uma Europa solitária. É o escritor que deu à imigração um papel metafórico. Seus narradores em primeira pessoa querem sair com mulheres estrangeiras, o exótico funcionando como atrativo sexual. É uma visão machista, a da colonização europeia reduzida à metonímia da imposição sexual. As mulheres se entregam a tudo enquanto o homem europeu conhece alguma alegria. Se o imigrante funciona como uma engrenagem erótica, o europeu se vê como um desalentado. Não há reinos para manter nem impérios para conquistar. Apenas sexo pago. Em Serotonina, o narrador vai e volta, pela memória, ao rol das paixões falidas, à sombra do amor extremo dos pais, que se suicidaram juntos quando o pai descobre um câncer incurável. Importante: a mãe renuncia à vida em nome do amor, seja isso lá o que for. No mundo afetivo do filho — um agrônomo em crise —, nenhuma mulher estará disposta a este sacrifício, até porque as relações não duram. Ele as perde sistematicamente e vive sem morada fixa, outra metáfora para as relações passageiras. Serotonina é um grande romance contemporâneo. É cada vez mais raro ler um livro atual em que não há pose ou um desejo de agradar ao público e à crítica. Corajosamente, o autor chega ao extremo das relações egóticas. Não é uma obra para salvar o mundo, mundo aliás que nunca se deixa ser salvo, ou para diminuir nosso complexo de culpa. É antes uma narrativa para nos humilhar diante de nosso incurável egoísmo, nossa igualmente incurável solidão predatória.
17 de março de 2019
Terminei Serotonina. Um bom livro. A autodestruição pelo isolamento e pela depressão. O uso de remédios para se manter vivo, paralelamente ao drama do homem que perdeu o estímulo para viver e está reduzido à contratação de sexo. Há uma análise do momento histórico neste drama. O homem europeu não consegue mais impor-se como modelo mundial de virilidade, nem sexual nem econômica. O sexo com imigrantes e estrangeiras o fascina, pelo exótico, ao mesmo tempo em que interrompe a construção da França para os franceses. Os seus personagens, que não conseguem continuar um modelo de país, estão representados por Aymeric, o nobre que cuida de uma granja e se envolve em manifestações nacionalistas em prol dos produtores locais de leite, acabando morto. Socialmente, ele já estava morto havia muito tempo. Florent-Claude, o narrador, representa também uma trajetória em fim de linha. Não há mais a França e sim um entroncamento global de pessoas e interesses econômicos. A falta de um relacionamento amoroso do narrador tem função simbólica. É machista, encarnando o poder em declínio. Sem o sexo que tornaria sua vida mais suportável, resta a ele a dormência social e erótica conferida por uma nova droga (Captorix), que ele usa como último vínculo com o mundo. Sem amigos, sem parentes (os pais viveram uma história de amor impossível), sem namoradas, sem casa, sem emprego. E com dinheiro mais do que suficiente para viver bem o resto de seus dias. No final, ele assume um discurso religioso que revela o ocaso desta França. Florent-Claude se coloca no lugar de discurso de Cristo, lembrando da morte como forma de enfrentar os corações endurecidos.
No geral, ao livro falta narrativa. E sobram comentários. Muito bom, mas não chega a ser uma obra-prima como Plataforma. A desconexão das fases da vida do narrador atrapalha a leitura. Ele vai abandonando as pessoas e os episódios. Tem mais estrutura de novela do que de romance.