3 de janeiro de 2018
Leitura de Hilda Hilst. Seus poemas do início de carreira — anos 1950 — têm um lirismo que é simples e hermético, ao mesmo tempo. Desconhecia esses livros matinais.
4 de janeiro
Estou me deliciando com os poemas de começo de carreira de Hilda Hilst — sob a influência da Geração de 45 —, escritos em uma dicção atemporal, sem desejos de experimentação. Queria inscrever-se em um discurso, em uma língua, em uma tradição. Fundamental esta leitura em ordem cronológica. Ver a movimentação da autora.
11 de janeiro
Li o volume Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), de Hilda. É quando ela começa a ser quem ela acabou sendo. O hermetismo gratuito dá lugar para um verbo que explora três grandes temas: amor, morte e imortalidade. Hilda está na casa dos 40 e tem uma compreensão física da passagem do tempo. Nos outros livros, anteriores, estas questões aparecem, mas são mais palavras. Agora ela acrescenta sangue e nervos aos seus temas eternos.
16 de janeiro
Li dois livros de Hilda Hilst. A crise dos 50 dá uma densidade a seu hermetismo um tanto gratuito. A morte se torna razão da poesia, ocupando o lugar do amor. E o homem esperado cede terreno à morte alcançada, com quem a poeta se enlaça. Nestes poemas, a mulher cresce e deixa para trás a figura feminina lírica convencional. É a mulher trovadora dentro de um código mais tradicional. Da morte, odes mínimas e Cantares de perda e predileção, duas coletâneas intensas, refundam a poeta, ainda no plano do abstrato, mas com uma verdade de linguagem mais filosófica. O tempo da busca do amor como realização passou. A poeta faz aproximações com a morte.
A leitura cronológica de uma obra permite esta trajetória biográfica da escrita. É algo fundamental para dimensionar a obra, reconhecendo o que vai se tornando a face da autora. Hilda passa da sensualidade hermético-amorosa para a sensualidade místico-elegíaca, em tom sério, no verbo elevado dos poetas maiores. Depois chegará à poesia do corpo decaído, pornográfica, gozosa. Uma trajetória de apogeu e queda da linguagem. Quanto mais decai mais se aproxima da vida que aos poucos se apaga. A poeta prefere vestir-se com palavras de escárnio. A moça criticada pela sociedade tradicional, em cujo seio nasceu, tida como liberta e libertina, se faz, na velhice, uma voz que se vinga de toda a hipocrisia social e corporal. A beleza da juventude (e do código lírico) é uma forma de mentir.
19 de fevereiro
Hoje à tarde li Frantumaglia, de Elena Ferrante. Há boas ideias sobre escrita nesta autora que defende a literatura como verdade, não verdade histórica ou social, mas a verdade enquanto linguagem, enquanto escrita, como um texto que nasce sem esforço, sem ser construído estilisticamente. São conceitos interessantes os seus, que explicam o que tento fazer. Como o livro é muito extenso, e como as perguntas dos entrevistadores se repetem, estou achando tudo um tanto cansativo.
9 de junho
Leio a poesia de Júlia da Costa (1844-1911) — um lirismo espontâneo, que busca metáforas para a fragilidade do ser. Não é uma poeta ruim. Chego a me animar com esta obra romântica em que a orfandade tem presença forte. Pretendo escrever um ensaio sobre o isolamento da poeta e dos estados do Paraná e Santa Catarina. A poeta que mora em Paranaguá e se muda para São Francisco do Sul, onde termina a vida enclausurada e louca. Uma obra-metáfora.
14 de junho
Terminei de ler a poesia de Júlia da Costa — agora leio a pouca prosa dela, incluindo as cartas. Uma grande poeta do romantismo — com os defeitos líricos desta escola, mas com o drama próprio de ser uma mulher inteligente e sensível em um meio tacanho. Enquanto lia, pensava na forma de abordar esta obra em um ensaio. Ela foi maior do que o Paraná da época. Todo bom escritor é maior do que o meio em que surgiu. Há uma geografia intelectual que supera a geografia física e humana.
6 de julho
Ontem à noite, passando em uma livraria, achei o livro de poemas A vida é um escândalo, de Affonso Romano de Sant’Anna. Marca os 80 anos do poeta. Comprei depois de ler uns poemas. Há uma serenidade ao tratar da morte, um tom crepuscular em que sentimos enfraquecendo o batimento cardíaco da poesia. Poemas muito bons, sem rompantes. A última coletânea de Carlos Drummond de Andrade — Farwell — trazia o tom rebaixado da morte e o tom estridente das paixões. Os poemas se alternavam enquanto registro. Melancolia e melodia. E isso produzia um efeito surpreendentemente jovem. O amor na velhice é uma revolta vital. A aceitação da morte, uma lição de renúncia.
Em Affonso há apenas a renúncia e o espanto — palavra-chave do livro — diante da vida vivida e por viver por outras pessoas. A leitura do livro à noite não me deixou dormir, apesar do ansiolítico que tomei.
10 de agosto
Concluí a leitura de Quando ela era boa, de Philip Roth: um retrato cruel de uma jovem moralista que espalha sofrimento ao seu redor. O livro não é o melhor de Roth, mas traz um olhar devastador sobre a família, espaço de todas a incompreensões. Li o romance com muito interesse, fazendo comparações com pessoas reais de meu convívio. O romance realista tem este poder representacional. Nos devolve às nossas experiências. A estrutura esburacada do romance de Roth permite descobertas. Só mais para o final vamos desvelando a identidade demoníaca da jovem religiosa, que passa de inocente destruída pela família a perversa manipuladora. Não há grandes frases, ideias que grifemos, mas o livro funciona bem.
11 de agosto
Levantei cedo para ler os contos de Alice Munro — As luas de Júpiter. São histórias comovedoramente humanas, nas quais a vida vai se revelando como solidão, incompreensão e fatalismo. Saio de seus contos muito tocado, com uma sensação boa de ter gasto aquele tempo com a leitura. Deixamos de fazer nossas tarefas, não demos atenção à família, não ganhamos dinheiro, tudo para ler ficção. Então, ela deve nos preencher com algo que justifique este tempo. Com Alice Munro me sinto recompensado. E, no entanto, horas depois, a história lida some de minha memória. Me lembro muito pouco das narrativas dela, embora sempre me entusiasmar com o ato da leitura. Por que não permanecem individualizadas em minha recordação? Talvez porque se confundam demais com a experiência cotidiana. E não guardamos estes pequenos episódios do dia, nem quando ao final de uma jornada tentamos fixá-los em nossos diários. Os dias foram feitos para o esquecimento.