Erotismo espiritualizado

Valorizada como a primeira voz feminina a expressar-se eroticamente em verso, Gilka Machado gozou de uma fama inicial que beirava o escândalo
Ilustração: Isadora Machado
30/06/2018

Eleita a maior “poetisa” brasileira em 1933 por uma enquete da revista O Malho, vencendo com estrondosa vantagem Cecília Meireles (100 votos contra 6), a carioca Gilka Machado (1893-1980) cairia em seguida no ostracismo. E as razões para isso não foram apenas estéticas, embora ela mantivesse uma poesia ainda muito presa ao espiritualismo anterior ao Movimento Modernista. Tal como Cecília Meireles, vinculou-se aos prolongadores do Simbolismo que se uniam em torno da revista Festa (1920-1930), criada por dois paranaenses, Tasso da Silveira e Andrade Muricy, em defesa de uma moderna visão católica em arte. Esta tendência não impediu que Cecília construísse uma obra poética reconhecida, o que indica não ter sido esta filiação a causa principal do apagamento de Gilka, que tem a sua Poesia completa novamente reeditada (São Paulo: Demônio Negro, 2017).

Valorizada como a primeira voz feminina a expressar-se eroticamente em verso, Gilka Machado gozou de uma fama inicial que beirava o escândalo. Era a jovem poeta a escrever versos de uma sensualidade inédita em nossa tradição. Casou-se muito jovem (em 1910) com o poeta e jornalista Rodolfo de Melo Machado, que morre em 1923, deixando-a com dois filhos e sem meios para sustentar a família. Neste período de vida conjugal, ela escreve os seus principais livros — Cristais partidos (1915), Estados de alma (1917) e Mulher nua (1922). Rodolfo era o outro de sua lírica erótica que se manifesta assim dentro de uma grande e breve paixão conjugal. Mesmo a representação desse erotismo de cônjuges se dá em linguagem metafórica. A poeta usa palavras do campo da sexualidade que assumem um valor espiritual, fiel à sua formação decadentista (em estética) e católica (em religião). É mais o registro sensorial de um eu lírico do que a sugestão de encontros sexuais.

Daí que eu possa gozar, ao vosso colo rente,
esse perfume a um tempo excitante e emoliente,
numa dúbia, sensual e suave sensação!

Desde as aliterações ciciantes, tudo revela um ser em êxtase. A sua linguagem erotizada é uma inovação na poesia de autoria feminina e permite que seus livros sejam lidos como uma versão dos Cântico dos Cânticos, em que a mulher procura sempre o amado e o amado lhe escapa pela fugacidade de tudo. Esta matriz bíblica é fundamental para entender o conjunto de metáforas que sustenta uma poética amorosa nascida da cumplicidade do casal. Mesmo depois da morte do esposo, ela continuará a escrever poemas eróticos em que a memória dele ocupa o lugar físico que ficou vago em sua vida.

Assim, termos como orgia, volúpia, desejo, devassa etc. (próprios do campo da sexualidade) têm um valor particular e um destinatário único. Não podem ser entendidos mundanamente, pois pertencem antes a uma poética de exacerbação das sensações. Mais ainda, o desejo ganha uma significação religiosa. E o encontro carnal se converte em encontro com a divindade: “guardemos este amor com toda a castidade […]/ Pela conservação de nosso amor, desisto/ dessa orgia carnal, e/ ternamente acesa/ para o gozo do Mal,/ e, como as freiras são as esposas de Cristo,/ serei a tua esposa espiritual”.

Estão assim delimitadas as fronteiras desta poesia castamente ousada, em que o erotismo está mais no uso sensorial das palavras do que na referência a comportamentos devassos. Mesmo assim, em uma sociedade em que a mulher era condenada ao silêncio, principalmente ao silêncio sobre o seu próprio corpo, sobre os seus desejos, a poesia de Gilka Machado sofreu difamações. Embora a “mulher nua” que dá título a uma de suas coletâneas fosse antes de tudo a mulher da alma nua (livre do próprio corpo), a poeta passou a figurar como uma perdida que escancarava seus hábitos feios. Esta compreensão lúbrica de seus poemas despertava mais interesse pela mulher do que pela poeta, o que a frustrava. Ela viverá sempre esta condição cindida, em um erotismo espiritualizado.

A má fama criada em torno dela e outros fatores vão fazer com que desista da poesia. Gilka era de origem muito humilde, vencendo as limitações de formação com esforço autodidata. Casou-se com um rapaz também pobre. E acabou na completa miséria com a viuvez precoce. Inicialmente diarista na Estrada de Ferro Central do Brasil, fez-se dona de pensão, enquanto educava os filhos, passando o resto da vida em trabalhos que deixavam pouco ou nenhum tempo para a arte. Embora sempre recolhida, colou nela a imagem da libertina, ao ponto de, na nota biográfica das Poesias completas editadas em 1978, ela se defender: “Nunca matei, nunca roubei, nem fiz mal ao próximo; nunca bebi, nunca joguei, nunca fumei nem participei de orgias”. A poesia ficou para ela como uma corcunda socialmente incômoda.

E não só por ser mulher e escrever em uma linguagem erotizada. Também por ser descendente de artistas populares. O repentista baiano Francisco Moniz Barreto era seu bisavó e o violinista português Francisco Pereira da Costa seu avô. Sua mãe e sua tia atuavam como atrizes do rádio. A isso se alia a sua condição étnica. Existem poucas fotos de Gilka, em que não fica evidente aquilo que talvez mais tenha atrapalhado a recepção isenta de sua grande poesia espiritualista. Ela era mulata. Ou seja, uma pessoa vista como objeto erótico pelos homens, tal como conta o mulato genial Lima Barreto, ao falar de sua irmã Evangelina, em seu Diário íntimo: “Minha irmã, esquecida que, como mulata que se quer salvar, deve ter um certo recato, uma certa timidez”. Qualquer liberdade é tomada como libertinagem.

Os outros três livros de Gilka serão publicados de forma cada vez mais espaçada — Meu glorioso pecado (1928), Sublimação (1938) e Velha poesia (1968). Nos dois últimos, ela diminui o erotismo simbólico de seus versos, dedicando-se a uma poesia mais sociológica. Ganha importância aqui a valorização do amado ideal como um ser “moreno” e as raízes africanas de seu ramo familiar oriundo da Bahia. A consciência das limitações materiais também dá um novo estofo aos seus poemas, e a irmana aos miseráveis. Ela escuta os sofrimentos que estão em seu sangue, as longas misérias vividas e transforma a sua poesia em um canto de africanidade.

Em Escutando-me (de A mulher nua), começara a desenvolver esta busca. Chega a ecoar o poema Vozes d’África, de Castro Alves: “Quem poderá calar a multidão aflita/ que, sempre, em minha alma e em meus silêncios grita:/ Deus, Senhor, onde estão da existência os prazeres?!…”. Mas é em Sublimação que seu verbo se torna mais político. Ela elogia os jogadores de futebol do Brasil, vistos como “astros escuros/ sóis morenos” e enaltece “as negras baianas” e o homem “moreno/ de pele crepuscular”. Sua poesia agora positiva a África brasileira de onde ela vem.

Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, uma exposição sobre o preconceito contra negros e mulatos, o narrador se questionava sobre as causas de “tão feios fins de tão belos começos”? E no final do livro ele responde: “a má vontade geral, a excomunhão dos outros”. Programaticamente esquecida na história da literatura brasileira, Gilka Machado ressurge como irmã espiritual de Lima Barreto, alguém que sofreu mais do que ele a exclusão histórica por ter sido mulher e ousado sensualizar a poesia.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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