Diário Ínfimo

Ao começar um texto de ficção, tenho certeza de que parte de minha vida (uma manhã, um mês, um ano, o resto de meus dias) estará estragada
Ilustração: FP Rodrigues
30/04/2020

Dezembro de 2015

Dia 11
Nicanor Parra revisited: Os cinco maiores poetas da língua portuguesa são no mínimo três: Fernando Pessoa.
Dia 14
Ao começar um texto de ficção, tenho certeza de que parte de minha vida (uma manhã, um mês, um ano, o resto de meus dias) estará estragada.
Dia 22
Doenças contagiosas: O otimismo é uma atrofia do nervo crítico.
*
Não, isso não é jornalismo! A grande literatura é previamente desatual como tema e como linguagem.

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Janeiro de 2016

Dia 6
Clássicos não são livros do passado e sim polos de intercontemporaneidades.
Dia 11
A cada ano nosso corpo aumenta a tarifa dos impostos.
Dia 12
O político luta contra o mundo. O artista, contra si próprio.
Dia 30
Há autores que não são adequados para representar o seu país ou a língua. Geralmente, são os melhores.

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Fevereiro de 2016

Dia 2
O artista, ferrugem na engrenagem das ideologias.
Dia 12
Qualquer que seja a dose de felicidade, ela será insuficiente.
Dia 18
Don Juan só é feliz com a pessoa que um dia ainda vai conhecer.

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Março de 2016

Dia 1º
Voltar todos os dias à mesma história, por meses, como quem vai sempre a um programa diferente. Deixar de falar com as pessoas para fazer as pessoas falarem. E saber que no final tudo fará sentido, mesmo (e talvez principalmente) se não houver sentido nenhum.
Dia 14
Os livros planejados e nunca escritos são os que mais contam no conjunto de uma obra.
Dia 24
Depois de servirem a fins políticos certas palavras se esvaziam de sentido.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Abril de 2016

Dia 10
Palavras muito repetidas carregam uma cegueira coletiva.
Dia 11
Os sensatos não têm lado.
Dia 13
Nossas escolhas nos excluem.
Dia 16
E tudo você olha como quem já vai embora.
Dia 22
Uma oficina de criação literária sem nenhuma vaga para participantes. O único aluno é quem ministra o curso. Duração: a vida toda.
Dia 25
A escrita tem um motor sutil, que se desliga facilmente, com a nossa menor distração.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Maio de 2016

Dia 2
Com uns poucos cacos, os especialistas reconstituem uma cerâmica árabe na Alcazaba de Málaga. É este o processo do romance histórico. Com uns poucos fatos, reconstituir todo um universo, devolvendo às pessoas a sensação de inteireza.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Junho de 2016

Dia 6
Dedicar-se integralmente à arte como uma forma heroica de fracassar.
Dia 7
Se houvesse um aparelho para registrar integralmente os nossos sonhos, todos seríamos capazes de criar grandes narrativas fragmentadas, surrealistas e intensas. E teríamos conquistado uma outra vida, da qual, pela manhã, nos chegam apenas farrapos.
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E disse o rio: — A represa não me representa.
Dia 14
Diletantes não têm dilemas.
Dia 27
Apenas quando mais duvidamos de nós mesmos é que há alguma chance de nos conhecermos.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Julho de 2016

Dia 4
Muitas vezes tudo que tem para dizer um livro está integralmente em seu título.
Dia 24
O melhor tempo para se viver é quando ainda estamos vivos.
Dia 27
Acha que faz literatura quando apenas tenta fazer sucesso.

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Agosto de 2016

Dia 4
A velhice nos exila em nosso próprio corpo.

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Setembro de 2016

Dia 18
Não há animal mais paciente do que o livro. Ele pode ficar nos esperando por décadas.

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Outubro de 2016

Dia 4
Perfilados na mesa, os livros que esperam ser lidos brigam entre si.
Dia 6
De tudo que fazemos sobra ao menos o termos feito.

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Novembro de 2016

Dia 3
A melhor maneira de voltar à realidade é lendo ficção.
Dia 23
Comer cada vez menos é a maior demanda ecológica de nosso tempo.

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Dezembro de 2016

Dia 5
Só é possível pensar contra o próprio salário.
Dia 16
Nas sextas-feiras nos reconciliamos com a infância.
Dia 29
O escritor é um ser permanentemente diante de si mesmo.
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Sonho: quando nosso corpo se torna pequeno demais para quem somos.

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Janeiro de 2017

Dia 10
Boas práticas: Fazer bem já é fazer o bem.

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Fevereiro de 2017

Dia 4
A maldição dos imaginativos é que mais vivem quando dormindo.
Dia 5
As redes sociais são como uma vila, todo mundo se metendo em sua vida.
Dia 6
Quando você escreve um romance e tudo vai bem, quer voltar logo para casa e escrever a próxima cena para saber o que vai acontecer.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Abril de 2017

Dia 28
Envelhecendo, passamos a sentir saudades. Saudades do futuro que não teremos.
Dia 30
O pior de estarmos vivos é que ainda não morremos.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Maio de 2017

Dia 11
Nenhuma cidade existe por si só. Precisa que nos recordemos dela.
Dia 16
O tempo de lazer que gastamos sofrendo por causa das questões do trabalho também deveria contar para a aposentadoria.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Junho de 2017

Dia 21
Quando você enfim aprende a ser feliz já passou a sua vez.
Dia 28
Pesquisas demonstram que Kafka também lavava louça.

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Agosto de 2017

Dia 1º
Quando acordou, o próprio corpo ainda estava ali.

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Setembro de 2017

Dia 10
De mim não se espere que eu apenas espere.

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Novembro de 2017

Dia 1º
Vantagem: Os finados não pagam financiamento.
Dia 4
Viver segundo princípios que silenciamos talvez seja a única postura decente que nos resta.
Dia 23
Somos todos ativistas acionados por matérias patrocinadas (ideologicamente).

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Ilustração: FP Rodrigues
Ilustração: FP Rodrigues

Dezembro de 2017

Dia 12
A cultura literária é uma prática de desproteção.

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Janeiro de 2018

Dia 2
Quando eu era menino a infância já tinha acabado.
Dia 5
A internet nos levou a escrever para a torcida.
Dia 20
Não acontecia nada naquelas tardes e isso era a felicidade.
Dia 23
O escritor é abduzido por seus seres fictícios.
Dia 25
O silêncio só discute com o próprio silêncio.
Dia 26
Em literatura todo retrato é imaginário.

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Fevereiro de 2018

Dia 10
Ao comprar um livro, você hipoteca psicologicamente um tempo para a sua leitura.
Dia 15
Acreditar em Deus é fácil. Duro é fazer com que ele acredite na gente.
Dia 18
Nos sonhos, as ideias são realidades prontas.

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Março de 2018

Dia 3
E disse meu mestre imaginário: — O medo fede, o amor cheira e o ódio é inodoro.
Dia 12
Para os sonhos não há senha de acesso.

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Abril de 2018

Dia 17
Toda forma de amor é em legítima defesa.

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Junho de 2018

Dia 5
O insone não se conforma consigo mesmo.

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Novembro de 2018

Dia 16
Vivemos um tempo em que as pessoas não pensam antes de falar. E nem depois.

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Dezembro de 2018

Dia 9
Identidade: Pertencemos àquilo que nos falta.
Dia 27
Estamos sempre de volta à linguagem.
Dia 31
Tudo versus nada: Os intensos vivem sem plano B.

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Janeiro de 2019

Dia 17
Não sabia se vender como a alface mais fresca da feira.

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Março de 2019

Dia 6
A grande literatura nos limpa da realidade crua.

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Abril de 2019

Dia 21
Apenas o retorno aos grandes livros não é decepcionante.

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Junho de 2019

Dia 1º
Entre os escritores esquecidos a literatura continua viva.
Dia 10
Há escritores que só leem os próprios textos. E são péssimos. Há outros que não leem nem isso. Estes são os piores.

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Julho de 2019

Dia 17
Penso a escrita como um esconderijo. Vamos até lá para fugir das pessoas.

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Agosto de 2019

Dia 31
O poeta cumpre agendas imaginárias.

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Setembro de 2019

Dia 17
A mágoa tem âncoras pesadas.
Dia 21
Em tempos de incêndios, todo fósforo é suspeito.
Dia 29
A doença é um grito para dentro.

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Dezembro de 2019

Dia 2
Um livro é um fio de água que escorre criando o seu próprio trajeto.
Dia 14
Quem não sonha enquanto dorme se desperdiça.
Dia 31
Geralmente lemos livros; raramente lemos literatura.

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Janeiro de 2020

Dia 2
Ele acordou de madrugada e entrou direto no mundo dos sonhos que era a escrita de um romance.
Dia 31
Me dou de presente o meu próprio silêncio.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho