Dentro e fora do tempo

Affonso Romano de Sant'Anna chega a um estágio de sublimação do ser
Affonso Romano de Sant’Anna, autor de “A vida é um escândalo”
30/09/2018

Poeta experimental na primeira dentição (para usar a imagem de Oswald de Andrade), e que passou por uma busca do sentido épico do presente, Affonso Romano de Sant’Anna lança, aos 80 anos, um livro que promove a pacificação do eu. Sua coletânea A vida é um escândalo é fruto de um longo “desaprendizado” de todas as teorias e pretensões, criando um olhar ao mesmo tempo comovente e contido da existência. Affonso chega a um estágio de sublimação do ser, uma espécie de sintonia zen com a eternidade, em que o exibicionismo não tem lugar em versos sussurrados ao leitor, sem ímpetos reivindicatórios, uma coisa rara em um momento cultural em que cada eu grita nas mídias sociais. Esta linguagem nada efusiva se consolida em um momento de compreensão histórica e biológica da grandiosidade do fim. A conclusão a que se chega com a leitura desta poesia da maturidade é: há que se mudar o ritmo para ingressar no sem-tempo.

O caminho linguístico para este exercício de permanência se dá pela aproximação entre prosa e poesia. Seus poemas de agora renunciam a adornos líricos, acréscimos sonoros, jogos de linguagem, e inversões ou neologismos, para buscar o fluxo natural das palavras. O poeta não escreve; fala. E não com o leitor; consigo mesmo, dando ao livro um tom de renúncia a qualquer desejo de interferência no real. Tudo conduz para a morte, horizonte próximo e inalcançável, experiência do depois no agora.

Tendo se destacado em uma trajetória de cronista, a crônica surge aqui como um modelo poético, um estado lírico a partir do qual Affonso obtém poesia. A roupagem cotidiana da linguagem permite que ele tire a solenidade do verbo poético, construindo poemas em tom prosaico. É que o poeta agora quer dissolver-se na linguagem de todos, em uma comunhão com a vida que se esvai, apagando-se enquanto individualidade.

Há uma compreensão da dimensão irrelevante da experiência do tempo de cada indivíduo que funciona para acalmar um eu que não vê mais sentido em fazer coisas, em acumular história. Tudo tem uma profundidade obscura, inviabilizando o projeto utópico de permanência pela arte e pela história. Em vários poemas, haverá referência a idades imemoriais, tanto no futuro quanto no passado, produzindo um efeito melancólico para quem acredita na permanência do nome: “…o buraco negro/ a 900 milhões de anos-luz depois do Big Bang”; “Aquele crânio de 4,5 milhões de anos achado na Etiópia”; “…o mar/ — onde seres estão se metamorfoseando há 500 milhões de anos”; “Os astrofísicos falam de bilhões de anos/ como se Salomão e Sagan fossem iguais”; “Me atordoa/ que o mundo tenha mais de 14 bilhões de anos”. Este atordoamento por meio da consciência da pequenez do tempo de ser produz um desespero e acaba por consolidar um projeto de dimensionamento da arte e da existência. O poeta contempla o passado e o futuro como abismos que anulam a história para se conformar com este estado incaracterístico próprio da maturidade, em que os projetos juvenis de permanência histórica conduziam as rupturas existenciais e artísticas: “Houve um tempo em que os versos me perseguiam/ e a história ia comigo”. Este era um tempo de ilusões, e portanto falsamente grandioso. Agora, no tempo das desilusões, surge o que poderíamos chamar de heroísmo da neutralidade.

O poeta olha o mar diante de seu apartamento, da sacada em que cultiva a poesia e a jardinagem urbana, vendo nele o movimento de dissolução de tudo. É na série Noturno de Ipanema (1, 2 e 3) e em Diurno de Ipanema, um dos centros estruturais do livro, que a inviabilidade da permanência histórica se revela. Contemplando a praia, habitada por corpos inocentes, que ignoram a densidade temporal, o poeta “passa na pele o creme do esquecimento”, metáfora para o estado atual do eu, a caminho da imersão em um fluxo obscuro. Já se sentindo fora do tempo, embora ainda esteja dentro, resta a este eu ajudar a dissolver-se em algo maior, que abarca o infinito desconhecido. Em outras passagens, ele vai destacar o seu diálogo agora com as bactérias, com a parte putrescível do eu, em uma comunhão com a matéria mutante. Esta ideia reforça o projeto que Affonso chama de anulação propiciada pela morte e por quem se aproxima dela, um estágio em que a aventura humana ganha a sua verdadeira razão de ser:

A busca da felicidade
foi totalmente ultrapassada.
Os mortos atingiram
o que os vivos almejam
— a neutralidade absoluta.

O livro é o elogio da vida como apagamento, o que coloca em cena outro movimento do ser, a luta contra a dissolução e os entusiasmos juvenis. Em mais de um verso aparecerá a condição calma e inanimada da pedra como ideal de permanência estática no universo indesvendável. É a forma pela qual o eu assume um ritmo menos tumultuado. Objetos livres de memória, a pedras se colocam aquém e além do tempo. “E volto a pensar/ nas pedras silenciosas/ do Deserto de Atacama”. Os seres inanimados, nos quais o poeta passa a prestar atenção nesta fase de recolhimento, dão uma lição de silêncio, estabilidade e suavidade. “Comecei a me interessar pelos seres que não se mexem.” Esta descoberta de que está neles um ritmo mais lento e menos violento de existir o leva a um verso que mimetiza tais qualidades, demarcando um respeito pela extensão maior daquilo que se retrai em si mesmo.

No antípoda se encontra o sexo, visto a distância ou como algo inócuo, ainda quando não pode ser contornado. O poeta agora entende a busca do prazer (a alegria da carne) como miragem de quem ainda não tem o conhecimento terminal da existência, o que o leva a concluir: “O orgasmo distrai./ Mas não resolve”. Tudo pulsa intenso, mas em uma frequência fraca, nesta oferenda à morte que é esta antologia octogenária. Nela, a palavra “espanto” aparece várias vezes para nos alertar que, na reta final, continuaremos sem saber quase nada diante daquilo que nos coube viver.

Em A vida é um escândalo, Affonso Romano de Sant’Anna nos apresenta um retrato do poeta enquanto pedra que pulsa, apesar da aparente neutralidade da matéria rochosa. Se em Farewell (1997), de Carlos Drummond de Andrade, livro equivalente a este de Affonso, o poeta se debatia entre o entusiasmo erótico e o amortecimento, aqui a morte se fez um tom, um tema e um tempo. O perene.

A vida é um escândalo
Affonso Romano de Sant’Anna
Rocco
96 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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