A volta do contista

Estreando na prosa com duas coletâneas bem recebidas criticamente, Histórias de remorsos e rancores (1998) e os sobreviventes (2000), Luiz Ruffato não seguiu na carreira de contista, embora esta seja a sua vocação primeira
Ilustração: Fábio Abreu
31/07/2018

Existem os romancistas que escrevem contos e os contistas que escrevem romance. A maneira de escrever própria de um gênero se manifesta no outro, em deslocamentos que inovam as artes de narrar. Há ainda aqueles autores que, mesmo praticando dois ou mais gêneros, conseguem uma alteridade formal, dando ao leitor a sensação de serem personalidades literárias distintas em cada modalidade.

Estreando na prosa com duas coletâneas bem recebidas criticamente, Histórias de remorsos e rancores (1998) e os sobreviventes (2000), Luiz Ruffato não seguiu na carreira de contista, embora esta seja a sua vocação primeira. E se fez romancista com eles eram muitos cavalos (2001), uma narrativa longa obtida pela justaposição nervosa de episódios em torno da vida urbana na grande metrópole brasileira. Este livro é um conjunto de contos e de crônicas em funcionamento de romance, o que permitiu que a estrutura fragmentada fosse uma “descrição” pela linguagem da cidade de São Paulo, que só pode ser percebida nesta velocidade e multiplicidade de registros.

A partir deste livro, o autor se especializou em escrever se valendo de tal procedimento, e reorganizou seus contos de estreia em estruturas maiores, apresentadas como romances. Ruffato é um contista que escreve romance. Mais do que isso, um autor que monta romances a partir do entrelaçamento de histórias que podem ser compreendidas de maneira autônoma. Este é um recurso típico das vanguardas do começo do século 20, usado mesmo em um dos livros maiores da ficção brasileira — Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, o que localiza esteticamente a ficção de Ruffato em uma tradição de ruptura.

Neste ficcionista, o procedimento chega ao ponto de ele justapor também obras que são a justaposição de narrativas, como é o caso da pentalogia Inferno provisório, reunião dos romances de histórias Mamma, son tanto felice, O mundo inimigo, Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e Domingos sem Deus. O trabalho com a montagem é uma das marcas do autor, que agora retorna à gramática da história curta com um volume de contos avulsos, acumulados em seu currículo de publicações a partir de 2004 — A cidade dorme. São relatos de momentos diferentes, ligados a estes momentos, que não fazem parte de um conjunto pensado para figurar como algo maior, interligado. As peças não repercutem umas nas outras, nem como linguagem nem mesmo quando o tema é próximo. Estes contos pertencem a uma rotina de escritor, convidado para publicar ficção breve em jornais e revistas ou a participar de antologias. Poderíamos dizer que são pautados pelas demandas de um sistema literário em que o conto encontra mais público em reuniões temáticas.

Tirando Alegria, a maior narrativa do volume, que se alonga em uma estrutura de novela, os demais contos são muito breves e alguns tendem para o circunstancial. Neste, há um investimento de linguagem, um clima tenso-onírico, que revela uma viagem lisérgica pelo interior da personagem e do próprio país, em que a realidade apenas se insinua, embora possamos identificar referências à ditadura militar brasileira, com seus desregrados e seus brutos oficiais da ordem. A história, que coloca em conflito o mundo das famílias e as comunidades voltadas para o prazer, em um clima de liberação dos sentidos, é narrada por um jovem chapado, que não percebe bem o que está vivendo. A própria questão da alegria era uma bandeira da geração dos anos 60/70, época implícita nesta ficção cifrada. O conto (datado de 2016) estaria dentro do calendário de comemoração dos 30 anos do fim da ditadura (1964-1985), tendo portanto uma função histórica por repercutir uma efeméride.

Este contexto hippie é tratado de forma mais realista em Água parada, em que a viagem pelo interior do Brasil se dá no plano geográfico e se interrompe por uma acomodação do narrador, que acaba vivendo em Ilhéus (Bahia), lugar em que nunca desejou morar. Esta suspensão do movimento é simbólica, mostrando o fim dos sonhos e o início da vida rotineira em uma cidade que não foi de sua eleição.

Nesta ótica de que os contos remetem a episódios do calendário recente do Brasil, podemos ver também a força da copa do mundo de 2014 por trás de algumas narrativas. Naquela altura, o autor publicou contos novos relacionados ao mundo do futebol ou republicou textos nesta linha já divulgados antes, respondendo à solicitação de matéria ficcional sobre este esporte. Assim, o futebol se faz o grande tema do livro, também por ter uma presença no imaginário do operariado brasileiro, grupo social mais recorrente nos livros de Luiz Ruffato.

Alguns textos da coletânea derivam para a crônica, o que é sempre um risco da escrita recolhida de publicações na imprensa. Podem ser incluídas nesta categoria: ¡Gua! e O expositor, em que a nota de registro se sobrepõe à linguagem e ao enredo. Mas há também contrapontos, textos em que os experimentos formais crescem, tornando-se o centro da narrativa, como Kate (Irineia). Quando se conciliam estes dois polos, um investimento de linguagem que funcione como narração, surgem os pontos altos do livro, como o conto que lhe dá título ou Minha vida, As vantagens da morte e O dia em que encontrei meu pai, momentos em que a nota memorialística estabelece uma empatia desolada com o que é narrado. “Eu era, eu sou, um corpo encharcado de lembranças”, diz um dos narradores.

Há também outra forma de vínculo. Com o objetivo de eleger o tipo de leitor desta matéria vária, Ruffato dedica cada conto a um escritor amigo, meio que sugerindo que o conto está mais dirigido a estes companheiros de viagem do que ao leitor comum. Enquanto o romance se faz aberto a um público maior, o conto é uma troca de senhas entre produtores. Assim, o texto vem com o seu destinatário ideal, a reforçar as relações diretas com episódios históricos e pessoas.

Crianças recordadas, jovens transgressores, gente pobre, adultos frustrados, trabalhadores, a legião convocada por Ruffato é uma escolha ética de trabalhar com os subalternos, enquanto a linguagem é a da ruptura estética, uma fronteira entre o realismo poético, com diálogos e descrições, e a linguagem de invenção. No todo, no entanto, temos um livro que reforça o caráter político das escolhas do escritor, que conta suas histórias a partir de trajetórias periféricas, para as quais ele concede um instrumento de expressão vanguardista. Ruffato é um experimentalista politizado, correspondendo a um perfil de intelectual brasileiro que voltou ao centro do campo do poder literário.

Se seus romances revelam uma força centrípeta, que solda trajetórias e linguagens diferentes, o volume de contos aposta na força centrífuga, criando, pela dispersão, um amplo painel de linguagem. O contista, dessa forma, demite o romancista, para se colocar no lugar axial da autoria. O contista quer ser lido como contista, na mudança de frequência das narrativas. A cidade dorme nos reconcilia com os dois primeiros livros do autor e nos faz lembrar que o bom romancista precisa ser um bom contista, mesmo que não publique contos.

A cidade dorme
Luiz Ruffato
Companhia das Letras
128 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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