Certa vez escrevi, num breve ensaio sobre o conto A cartomante, de Machado de Assis, que há pelo menos três tipos de leitor: o que nega, o que afirma e o que desconfia.
Talvez se possa dizer o mesmo do torcedor de futebol. O tipo que nega normalmente aparece quando se trata de torcer pela seleção brasileira. Sim, porque para muitos torcedores há uma diferença abismal entre torcer para um clube e torcer pelo Brasil. Quando se trata do seu clube, há torcedores que vibram até com cobrança de tiro-de-meta. Se, no entanto, diante da televisão está o time de camisa amarela, a emoção só acontece mesmo quando é jogo importante, de Copa do Mundo, ou se for contra a Argentina (aí vale até amistoso).
Veja por exemplo o caso daquele torcedor que aparece numa crônica do Nelson Rodrigues. O Brasil acabara de ganhar de 5 a 1 do Paraguai e depois do jogo Nelson esbarra com o amigo lúgubre. “Mas que cara de enterro é essa?”, pergunta. E o outro responde: “Estou decepcionado com o escrete!”
E Nelson conclui: “A seleção não tem saída. Se vence de cinco, se dá uma lavagem, o torcedor acha que o adversário não presta. Se empata, quem não presta somos nós. Durma-se com um barulho desses!”
Há também o torcedor que afirma sempre. Seu time pode estar uma porcaria, mas ele não admite. E torce ufanisticamente pela seleção brasileira, mesmo que seja em jogo-treino contra os juvenis do São Cristóvão. Esse é incapaz de autocrítica, pelo menos em público. Pode ser que num domingo à noite, a sós com o travesseiro, ele grite um palavrão contido a ferro e fogo durante o dia e mande seu time inteiro para o inferno! Mas com os amigos, na conversa de segunda-feira, ele volta ao normal.
Os que desconfiam são mais raros. Vão para o estádio com a camisa do time escondida debaixo de uma outra. Seu time é o favorito, aliás, o favoritíssimo, mas ainda assim o torcedor desconfiado não assume sua paixão. E quando algum desavisado — preferencialmente o torcedor crédulo, do parágrafo anterior — estranha o hábito de esconder a camisa, ele, cabisbaixo, apenas sussurra: nunca se sabe, nunca se sabe.
Para o torcedor que desconfia, vale uma máxima futebolística: o jogo só acaba quando termina. Seu time pode estar ganhando de 4 a 0 faltando cinco minutos para terminar o jogo, tanto faz, ele só acredita na vitória quando o juiz pega a bola e apita o final da peleja.
Os três tipos de torcedor de futebol se espalham país afora. E, claro, têm suas manias. Há de tudo nesse tema: as manias de torcedor.
E se algum dia você puder conversar com escritores, talvez se surpreenda com o fato de que também entre eles — cujo ofício parece não ter nada a ver com futebol — existem os que praticam a estranha arte de torcer.
Escritores torcedores
A propósito, fiz recentemente uma seriíssima pesquisa com alguns escritores, perguntando sobre a relação deles com seus times. Relato a seguir algumas respostas.
O poeta Paulo Henriques Britto não é nada ligado a futebol. É capaz de assistir a um jogo e perguntar quem é aquele sujeito vestido de preto com apito na mão (e querer saber por que nunca pega na bola e seu uniforme é diferente dos outros). Ele respondeu assim à pesquisa: “sou completamente ateu em matéria de futebol”.
Pérola das pérolas. Mesmo não gostando do esporte, Paulo reconhece — pelo menos é o que se pode depreender da sua frase — que se trata, mais do que de um mero jogo, de uma verdadeira religião.
José Castello, torcedor do Fluminense, respondeu dizendo que, quando fica nervoso vendo um jogo do seu time (e esse nervosismo é bem freqüente), tira o som da televisão. Diz que, com isso, tem a impressão de que adquire mais controle sobre o que se passa em campo. Faz sentido, se pensarmos que a narração do jogo, as informações do repórter de campo, o barulho das torcidas, tudo isso faz parte do espetáculo. Sem som, a partida perde muito da sua dramaticidade.
Nelson de Oliveira me escreveu surpreso, sem acreditar na incrível coincidência. Disse que, no momento em que recebeu a mensagem, estava justamente trabalhando numa nova antologia de contos brasileiros, que vai se chamar Geração 90 (minutos): manuscritos de torcedor. Imagine o que vai sair daí.
Outro torcedor fanático, o Marcelo Moutinho, revela que quando está no Maracanã não tem muitas manias não. Mas diante da televisão, em casa, precisa morder uma caneta (para não acabar com as unhas). E, se o time dele estiver ganhando, não troca jamais o lado da boca.
Meu conterrâneo André de Leones, torcedor do Goiás, é o desgosto do pai, nascido e criado na Vila Nova, bairro do arqui-rival. Na verdade, André assiste a qualquer jogo de futebol como se estivesse hipnotizado. Ele conta que já cansou de perder o ônibus porque atrás do ponto tem um campinho de terra. Quando o ônibus passa, ele só tem olhos para o jogão que está rolando entre os moleques descalços.
Outro André, o Sant’Anna, diz que em casos extremos usa a Figa do João Pelado para inutilizar um jogador adversário e que freqüentemente se vale do Método Silva Mind Control. E faz uma revelação bombástica, mantida em segredo por mais de vinte anos: foi ele, André, o responsável pelo tricampeonato do Fluminense em 1985.
A corintiana Ivana Arruda Leite viveu uma situação dramática. Foi ao estádio com um primo muito mau, que a forçou a assistir à vitória do Corinthians no meio da torcida do São Paulo. Ela saiu de lá direto para o hospital, com uma taquicardia que podia ser ouvida a quilômetros de distância.
Torcedora condicional
Cláudia Lage é um tipo interessante de torcedora: a condicional. Torcedor condicional é aquele que vai sempre lhe responder, se você perguntar se ele vai ou não assistir ao jogo: depende. Se o time vai bem, a Cláudia está lá, firme e forte. Se estiver mal, não quer nem saber. Sua única mania: se o time está perdendo, ela dá um tempo e vai consultar o I Ching sobre a possibilidade de uma virada.
Não é o caso do Raimundo Carrero, apaixonado torcedor do Sport Recife. Esse é do tipo que joga sandália no bandeirinha e volta descalço para casa, como aconteceu mais de uma vez. E geralmente sonha coisas estranhas na véspera de um clássico. Quando acontece isso, não vai ao estádio, não ouve o jogo no rádio, não vê na televisão. É um dia de muita agonia, e ele repetindo o tempo todo para si mesmo: deixa de ser idiota, Carrero!
Há os torcedores que, calmos no dia-a-dia, de voz macia e semblante tranqüilo, se desfiguram na hora do jogo. É o que acontece com o Gustavo Bernardo. De tanto susto com os berros do dono durante os jogos do seu time, os cachorros da casa precisaram fazer tratamento antiestresse.
E temos ainda aqueles que pensam a longo prazo, zelando não apenas pelo presente imediato mas pelo futuro do seu time. A esse grupo pertence, por exemplo, a gremista Valesca de Assis, que lá de Porto Alegre revelou que todo dia 31 de dezembro dorme com a camisa do clube, para dar sorte no ano seguinte.
O Rafael Cardoso tem tantas manias que se recusou a enumerá-las, com medo (mania das manias) de esquecer alguma e isso prejudicar seu time no próximo jogo. Mas saiu com uma frase muito boa: “o único escritor a ter uma reação lúcida com relação ao futebol foi Lima Barreto, que era louco”.
Comentário, aliás, que lembra o do Milton Hatoum. No meio das suas respostas, ele afirma: “só um louco assiste a um jogo do seu time sem revelar uma reação estranha”. A dele é a de mudar de posição na cadeira ou se sentar no chão e xingar o técnico quando o Flamengo está perdendo. Às vezes, complementa, tomar uma cachaça pura também ajuda.
Jogo galáctico
Roberto de Sousa Causo não entende muito de futebol, embora tenha decidido agora enveredar pelo tema. Contou que está escrevendo um conto de ficção científica em que o Flamengo está nas oitavas de final do Campeonato Intergaláctico e vai jogar no Maracanã contra um time do planeta Ocixém, um tal de Acirema. Goleada dos caras do outro planeta: 3 a 0. Cá entre nós, achei o enredo excessivamente realista.
Falando em Flamengo, dizem as más línguas — por favor não espalhe isso, pode ser apenas uma intriga qualquer — que o Luiz Ruffato só vê jogo do seu time em casa, sozinho, trancado no quarto, vestindo um pijama vermelho de bolinhas pretas.
O atleticano (do Paraná) Cristovão Tezza é um torcedor tribal, selvagem. Levanta o tempo todo diante da televisão e tem a mania de dar instruções para os jogadores do seu time, como se pudessem ouvi-lo. “Passa pro Netinho, idiota! Viu? Viu? Perdeu a bola.” Seu filho Felipe, um fanático mais apaziguado (se é que isso existe), disse a ele um dia: “Não adianta falar, pai, eles não ouvem daqui. Vai ler um livro que eu vejo o jogo pra você, vai!”
Affonso Romano de Sant’Anna encarna um outro tipo comum entre os torcedores: o eclético. Torcedor eclético é aquele que tem um time em cada estado do país. Desse modo, seja qual for o jogo, há de haver adrenalina à solta. Mas, no caso do Affonso, o time de coração mesmo é o Tupi (há torcedores do Tupi, por que não?), de Juiz de Fora.
Outro que tem times espalhados pelo país é o Braulio Tavares. O primeiro de todos, no entanto, é o grande “galo da Borborema”. Não está ligando o nome à pessoa, alienado leitor? É o Treze, da Paraíba. Quando tinha uns quinze anos de idade, Braulio inventou que dava azar ao clube. Sem saber se ia ao estádio ou não, escrevia em dois pedacinhos de papel: IR e FICAR, tirando a sorte na hora. Deixou de ver grandes jogos por causa disso e não consta que tenha interferido muito no destino do Treze.
O Dapieve, o Fernando Molica e o Verissimo responderam que… Bom, esses são botafoguenses. Torcedor do Botafogo merece uma crônica à parte. Fica para o mês que vem.