Numa crônica de 1905, João do Rio divaga sobre os nomes de estabelecimentos comerciais na cidade do Rio de Janeiro. A crônica, belíssima, tem como título Tabuletas e nela o cronista nos diz que as tabuletas são os brasões das ruas. Não se tratam apenas de uma marca necessária à publicidade do estabelecimento, mas sim dos escudos seculares de toda uma complicada heráldica urbana, ele diz. E completa dizendo que assim que alguém realiza algo que julga importante, seja a conclusão de uma epopéia ou a abertura de uma casa comercial, trata logo de batizar sua obra.
Segue então o cronista caminhando pela cidade, lendo, à sua maneira, tabuletas como Armazém Teoria, Grande Armazém de Líquidos Comestíveis, Café de Ambos Mundos, Casa Idealista, Açougue Celestial, Vulcão das 49 Flores, Hotel Livre Câmbio (imagine o leitor de que tipo de hotel se tratava), e por aí vai.
Um nome traz sempre em si um recado, como percebera João do Rio e também, décadas mais tarde, a escritora Ana Maria Machado, que se lançou à aventura — digna de um detetive — de decifrar os nomes de alguns personagens de Guimarães Rosa. Sua investigação virou livro, com o título Recado do nome, de que me apropriei aqui, pilhando honestamente a biblioteca alheia.
Para quem se interessa pelo tema, o mundo do futebol é um prato cheio. Por exemplo, que recado (ou recados) teria querido passar ao Brasil e ao mundo o heróico pernambucano fundador do Íbis Sport Club? Estaria pensando na ave pernalta, de pescoço longo e bico comprido, a ave que vive e se alimenta em grupos, o que seria sem dúvida um bom recado para um time de futebol?
Claro que não — santa ignorância! —, há de refutar algum torcedor mais exaltado. O nome foi criado pelo lendário Onildo Ramos, grande admirador das histórias do antigo Egito. O nome tem a ver com Toth, deus da sabedoria e da escrita, representado por um homem com uma cabeça de íbis. O recado parece claro, ainda mais que o nome se complementa com um aristocrático “Sport Club”. Não nos confunda com qualquer um, diz o nome do time, nossa glória vem de longe e se sustenta no presente.
Mas e o futuro? Saberia o fundador do time, ao passar esse recado, que décadas mais tarde seu clube seria conhecido como o pior time do mundo? O epíteto, certamente injusto, foi dado por uma torcida adversária, depois de nove derrotas consecutivas e uma seqüência de vinte e três jogos sem vitória. Injusto ou não, acabou pegando, e todo boleiro autêntico já ouviu falar dele.
É normal que aconteçam de vez em quando esses desvios. Quem sabe alguém não tenha dado o recado direito, pode ser. Quem criou o nome sabia o que estava querendo dizer mas vai você confiar nos recadeiros desse mundo?
Agora, quando o recado já sai ruim na sua origem, a coisa se complica. Veja o caso do time tcheco FK Mladá Boleslav, fundado em 1902 como Studenstký Sportovní Klub Mladá Boleslav. Em cerca de oitenta anos, mudou de nome doze vezes. O seu time, por exemplo, já mudou de nome? Então, o desses tchecos meio confusos já mudou doze! Não há recado que se recupere numa situação dessas (ainda mais para quem não tem a mínima idéia do que significa Mladá Boleslav).
Minha amiga Rúbia, gaúcha de Mormaço, é jogadora de futebol. Orgulhosamente, veste a camisa de um time feminino chamado Esporte Clube Sempre Com Sede. Uma vez lhe fiz a pergunta óbvia: de onde vinha o nome do time. Ela balançou os ombros, dizendo que não tinha a mínima idéia. Ao dizer isso, porém, seu riso cínico deixava claro que havia uma longa história escondida ali.
Nunca Pensei
Foi essa mesma amiga que me contou que há no Rio Grande do Sul uma cidade chamada Tio Hugo. Isso mesmo: Tio Hugo. E na cidade foi construído um ginásio, batizado solenemente de Ginásio Poliesportivo Nunca Pensei.
Comecemos pelo final: o que estaria querendo dizer quem batizou com esse nome o moderno ginásio? Que nunca pensou que Tio Hugo pudesse contar com obra de engenharia de tamanha envergadura? Ou que nunca pensou o quê, afinal? Mais um enigma do universo que não encontra resposta, há de dizer o leitor, balançando filosoficamente a cabeça.
Há, no entanto, uma bela explicação para o “poliesportivo”. Não pense você que se trata apenas de um ginásio com uma quadra de futebol. Nada disso. Há também, num canto, uma modesta cancha de boliche. E se há futebol e boliche, pronto, está dado o recado: poliesportivo!
Na cidade onde moro, Teresópolis, jogo num time de veteranos, ou masters (para dar a isto uma cor poética, como diria Machado), chamado Clube Atlético Duque de Caxias. O nome tem a ver com a rua em que fica o bar onde se reuniam os fundadores do time. Certo, mas o que vale mesmo é a sigla: CADUCA.
Perfeito para um time de velhos, dirá você, leitor abusado. Acontece que também tem isso: o recado do nome às vezes se revolta com sua origem, quebra os grilhões da mensagem inicial e ganha vida própria, navegando sozinho (ou bem acompanhado) por mares insuspeitos. Por que não? É o caso do CADUCA, que, modéstia à parte, está a anos-luz da caduquice. Às vezes o nome aponta para um lado e o recado cai para o outro, como um goleiro na cobrança de pênalti.
Falando nisso, temos um dos melhores goleiros da cidade. Não fosse pelo avançado dos seus cinqüenta anos (recém-completados) seria titular de vários times por aí. Qual o nome dele? Confesso que não sei, de tão acostumado com seu apelido: Peru. Sim, Peru, num exemplo claro de que o recado às vezes erra de endereço.
Não sei se errou no disputadíssimo campeonato de várzea de Pirituba, em São Paulo, que conta com times como o Meia Sola, o Casaca, o Só Nós e o Praça da Fumaça. São, todos eles, nomes carregados de histórias possíveis, mas fico pensando mesmo é nos recados que quiseram enviar ao futuro os fundadores de outros dois valorosos escretes da Copa Pirituba: o Pânico e o Panela Problema.
Poetas
Nomes de jogadores, então, mereceriam uma crônica à parte. Pelo avançado da hora, ficará para outro dia, embora não seja de todo impossível deixar aqui pelo menos o aperitivo.
No caso dos jogadores, não importa pensar no nome de batismo, cujo recado cifrado no mais das vezes, se existe, permanece restrito à memória dos pais, mas no apelido. O apelido, este sim interessa. O apelido é como um rico e singelo regalo que alguém generosamente oferta à história do futebol. E tendo origem na vida real, no meio mesmo da paixão do futebol, o apelido deixa recados que estouram os limites da realidade e vão explodir no céu da fantasia.
Numa de suas crônicas, o mestre João Saldanha conta de sua passagem como jogador do Posto 4 FC, campeão de futebol de praia no Rio, dirigido por aquele que o cronista considera, com razão, o técnico mais famoso de toda a costa atlântica (pelo menos na época dele): Neném Prancha. Ou, numa outra versão, mais óbvia e menos interessante: Neném Pé de Prancha.
Saldanha conta do dia em que estava reunido com os jogadores do seu time num bar em Copacabana. Estavam lá o Caveira-de-Burro, o Botina, o Pé de Chumbo, o Cuíca, entre outros. Além, claro, do Neném Prancha. Aquilo não era, convenhamos, um time, era uma convenção de apelidos. E eis que na alta madrugada chega, fazendo jus ao codinome, ninguém menos que o Coruja, boêmio e impetuoso lateral-direito. Chega e se dirige aos outros dizendo: “Como é, poetas?”
A crônica nem precisava continuar, já estava bom. O Coruja, querendo ou não, acertou o pé (pelo menos dessa vez): eram mesmo poetas os que estavam ali, capazes de transfigurar o Hélio, o Jaime, o Antonio, o Orlando naquelas figuras riquíssimas, que carregavam cidade afora seus recados nos nomes que eles próprios criaram para batizar uns aos outros.
É provável (eis aí outro recado perdido) que a palavra “recado” tenha vindo do latim recapitare, que significa: receber, acolher, recuperar. Quer dizer, recado é a recuperação de uma mensagem original. Mas é também acolhimento. O recado acolhe em si a mensagem de alguém e a repassa a outro, é uma espécie de ponte que liga as pessoas. Mesmo um recado malcriado, grosseiro, tem um pouco desse senso de humanidade, tão presente no futebol e tão difícil de definir.