O narrador

A importância de bom contador para histórias que muitas vezes parecem óbvias
Ilustração: Tereza Yamashita
01/08/2008

Uma pergunta da maior importância atravessa se não os séculos pelo menos algumas décadas, sem encontrar resposta definitiva: qual a função do radinho de pilha na vida do torcedor de futebol?

O sujeito está no estádio, digamos que num lugar privilegiado, de onde pode ver perfeitamente tudo o que está acontecendo em campo. Ninguém atrapalha sua visão — nem vendedor de refrigerante ou cerveja, nem torcedor se levantando a toda a hora na sua frente, nem gente passando de um lado para o outro —, nada o impede de ver perfeitamente cada jogador, cada lance da partida. E no entanto lá está o dito cujo, colado ao ouvido do cidadão: o radinho de pilha.

Você poderá dizer que a explicação é óbvia: o rádio transmite informações que o torcedor não tem, como as que são fornecidas pelo repórter de campo, por exemplo, além de transmitir os comentários de um especialista. Tudo bem, é uma explicação bastante razoável, mas não suficiente.

Há uma outra coisa que sempre moveu e ainda move o torcedor a levar ao estádio o seu radinho de pilha (ou, atualmente, seu MP4, celular com rádio ou seja lá o que for): ele precisa que alguém lhe conte uma história. Exatamente isso: ele precisa de um narrador.

Vivemos de ouvir e contar histórias, essa é que a verdade. Daí a figura do contador de histórias — o narrador — ser absolutamente insubstituível. Ela pode mudar de feição de uma época para outra, de um lugar para outro, mas vai sempre estar presente.

Foi isso o que percebeu Walter Benjamin, que na década de 30 escreveu um ensaio — O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov — mostrando como o contador de histórias das sociedades primitivas foi substituído, no início da modernidade, pelo romance. Quer dizer, se com a era moderna não havia mais espaço para o contador à moda antiga — um velho que reunia em torno de si alguns ouvintes, ansiosos por uma narrativa —, o narrador migrou para outro espaço, o do livro.

Quando ainda não havia televisão, o contador de histórias de futebol estava no rádio. Era em volta deste narrador que a família se reunia para acompanhar os jogos importantes. Não havia uma fogueira em torno da qual os ouvintes pudessem se reunir para ouvir o velho contador, mas havia o aconchego da sala e a voz que vinha de longe (às vezes do outro lado do oceano) para descrever cada episódio daquilo que às vezes se configurava como uma verdadeira epopéia.

A narrativa
Um jogo de futebol, desnecessário dizer, é uma narrativa, com começo, meio e fim. Cabe ao narrador contá-la. E como quem conta um conto aumenta um ponto, a história vai variar conforme o estilo do narrador.

Um exemplo. Na Copa da Alemanha, em 2006, o Instituto Ibero-Americano de Berlim montou uma pequena e preciosa exposição sobre futebol. Quem a visitasse teria o privilégio de ouvir algumas gravações memoráveis, dentre elas duas narrações distintas de um mesmo lance: o segundo gol de Ghiggia na final da Copa de 1950, no Maracanã, que deu o título ao Uruguai, contra o Brasil.

O brasileiro narrou o lance com uma voz soturna, como se fosse um aviso fúnebre: gol do Uruguai. E repetiu, talvez para convencer a si mesmo de que era verdade: gol do Uruguai. O uruguaio, por sua vez, ultrapassava todos os limites da euforia, verdadeiramente uivando ao microfone, diria mesmo que dava para ouvi-lo saltando da cadeira de braços abertos e peito estufado, enquanto repetia rouco as palavras mágicas, com vogais e consoantes multiplicadas ao infinito!

A partida era a mesma, dirá você, se for alguém sensato, com a balança do juízo bem ajustada. No mundo do futebol, percebe-se, ela pende para o lado da fantasia e, portanto, o que se pode depreender é que eram duas histórias diferentes: uma com final feliz, a outra com desfecho trágico (para dizer o mínimo).

E se quisermos dar um pulo no tempo, passando do radinho de pilha à era da televisão, veremos que a necessidade do narrador permanece. A situação é ainda mais interessante, em certo aspecto. Agora então é que você não precisaria mesmo de ninguém para lhe contar a história do jogo.

Você está na sua casa, sentado confortavelmente no sofá, e à sua frente a televisão vai mostrando as cenas uma a uma, vistas por vários ângulos e com a melhor imagem possível. E por que, apesar disso tudo, você precisa de um sujeito dizendo: Fulaninho recebe o lançamento pela direita (você está vendo isso, se não tiver problema de lateralidade sabe o que é esquerda e direita), coloca a bola no chão (você certamente sabe o que é chão, e bola) e chuta direto para o gol (sabe onde fica o gol, não sabe?)?

Numa crônica anterior, sobre escritores torcedores, citei o caso do José Castello, que tira o som da televisão quando o jogo está muito tenso. Aquilo de alguma forma vai mudar o resultado da partida? Ele sabe que não, mas sabe também que sem narrador a história perde sua dramaticidade, perde sua condição de artifício, ficção, espetáculo. E assim ele pode ter a sensação de que o jogo está sob controle.

E se você pensa que o Castello não regula bem da idéia, há coisas piores. Há torcedores que gostam de ver o jogo na televisão mas não gostam do tipo de narrador que ela, na sua linguagem específica, oferece ao espectador. Esses (e posso lhe garantir, com conhecimento de causa, que não são poucos) optam pelo gesto absolutamente intertextual de tirar o som da televisão e ligar o rádio. Quer dizer, vêem as imagens na tela mas ouvem a partida no rádio!

Formas de narrar
E o interessante é que, de fato, são duas formas completamente diferentes de narrar. Na televisão, o narrador não conta tudo, justamente porque sabe que você está ali, vendo. Há pequenos intervalos de silêncio na narração e isso não impede que você continue acompanhando a história. Silêncio no rádio é suicídio, convenhamos. Se o narrador pára de contar é como se a história estivesse sendo interrompida — aconteceu algum problema de transmissão, o ouvinte há de pensar. É preciso haver algum som, seja de que tipo for, o tempo todo.

Outra diferença: na televisão, o narrador não pode inventar muito. Claro que ele precisa dar um toque pessoal na narração, caso contrário seria melhor nem estar ali, dando vaga a outro, mas se a bola passou longe da trave ele não pode dizer que passou raspando. Não dá. Mas no rádio pode?, perguntará o leitor ingênuo, daqueles que nunca ouviu um jogo pelo rádio.

Não apenas pode como acontece com freqüência. O narrador, nesse caso, precisa trabalhar com a imaginação do seu ouvinte, e a estratégia normalmente usada é a da extrema dramaticidade. O drible foi normalzinho? Vira um drible magistral! O lançamento foi até bonitinho? Transforma-se num lance antológico! O gol foi sem querer? Pois agora é gol de placa!

Há também, claro, os narradores de rádio que preferem ser mais contidos, sem tanto exagero, e buscam segurar seu ouvinte com outras estratégias, como a do humor, por exemplo. E há, por outro lado, os narradores de televisão que se apropriam da linguagem do rádio, com inflexões de voz mais carregadas e gritos de gol, digamos, um pouco mais sonoros do que o habitual.

O que importa, no caso, é o modo que cada narrador encontra para contar sua história. Isto serve, de diferentes maneiras, para o rádio e a televisão. E, sem dúvida alguma, para a literatura. Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, traz um belo enredo, mas o que seria dele sem o modo de contar, o jeito todo torto (que caminha para frente e para os lados), do jagunço-narrador Riobaldo? E o que seria de Dom Casmurronão fosse a sacada genial de Machado de Assis: criar um narrador ambíguo (não por acaso nasce dele a ambigüidade de Capitu) como Bentinho?

Como a literatura, o futebol também guarda no seu baú histórias de todo tipo. O drama, a tragédia, a comédia, o suspense, tem para todos os gostos. E para cada uma delas há um narrador. O narrador não é apenas uma voz, é a alma da história. Um jogo de futebol não deixa de existir por não ter quem o narre. Ele está acontecendo lá, no campo, independentemente de alguém estar ou não contando o que se passa. Agora, cá entre nós, uma coisa posso lhe dizer, no segredo confessional das quatro linhas (da página): sem um bom contador de histórias, o jogo não vai ter a mesma graça.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

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