Se você quer formar um time de futebol, só tenho um conselho a lhe dar: não procure matéria-prima numa faculdade de Letras. Por algum motivo que me escapa, não é bem ali que se encontram os melhores praticantes desse esporte.
Comecei a me dar conta disso lá pelos idos de 1980, quando fiz minha graduação em literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A UERJ fica em frente ao Maracanã e isso, juro, não foi o motivo que me levou à escolha quando me inscrevi no vestibular. De todo modo, imaginei que talvez, quem sabe, a proximidade do estádio despertasse nos futuros colegas algo como um sopro poético que os levasse a tentar a sorte também nos gramados.
Ledo engano. Era sempre uma tremenda dificuldade montar nosso time para as nada saudosas olimpíadas universitárias.
Lembro que num sábado à tarde estávamos nós, os valorosos atletas da Letras, reunidos e concentrados num bar em frente à universidade, quando nos demos conta do que era óbvio: não ia dar para jogar naquele dia. Nem tanto pelo teor etílico dos atletas (felizmente não havia exame antidoping) mas pelo simples fato de que faltavam dois jogadores no nosso time.
E não digo dois titulares, não, nada disso, faltavam dois mesmo, para completar onze. Certo, tínhamos lá a Mary Kimiko — minha amiga filha de japonês, com nome inglês e professora de latim —, goleira do time de handebol e que poderia até quebrar um galho, se fosse o caso. E havia também o garçom do bar, que a gente chamava de Nestor porque era a cara daquele amigo do Zé Carioca.
O problema era convencer os organizadores das olimpíadas a aceitarem uma mulher no time e um atleta inscrito na hora (a carteirinha do Nestor que falsificamos ali na mesa do bar estava até convincente). Depois de árdua argumentação, e talvez porque os caras tivessem ficado com pena daquele nosso verdadeiro exército de Brancaleone, aceitaram o Nestor e a Mary.
Resultado: perdemos sei lá de quanto a zero. Depois dos sete desisti de contar, sem remorso. O jogo era contra os caras da Matemática, eles que contassem!
Aliás, nem o juiz estava contando muito bem porque me deu simplesmente dois cartões amarelos. Achei graça e disse que ele ia ser reprovado (os juízes eram recrutados entre os alunos da Educação Física e a atuação deles valia nota). Ele não gostou e me expulsou de campo. Para completar o estrago, o Bith, craque do nosso time, resolveu tomar as minhas dores e foi expulso também.
Com dois a menos, reafirmamos nosso protesto contra as ciências exatas num gesto revolucionário: tiramos as camisas, saímos de campo e voltamos ao bar, que infelizmente já estava fechado, por falta de garçom.
Estranho campeonato
Nem tudo, porém, estava perdido. Foi dali, daquela frustração pelas coisas injustas, que nasceu o campeonato mais estranho de que já se teve notícia em todo o planeta e quem sabe até mesmo noutras galáxias: nosso campeonato de duplas.
Eu e três amigos, contrariados com as dificuldades de armar um time decente na faculdade de Letras, decidimos criar um campeonato que só dependesse de nós mesmos. Formamos então duas duplas e, contrariando qualquer lógica futebolística, armamos um campeonato que contava, no total, com quatro jogadores! Um campeonato de golzinho.
Para os leigos, é preciso explicar que existe um jogo muito popular no Brasil, cujo nome varia de região para região. Em Goiás, é golzinho. No Rio, gol a gol. Funciona da seguinte maneira: você pega duas pedras, dois chinelos de dedo, duas camisetas amassadas, qualquer coisa que possa substituir as traves, e as coloca a uma pequena distância uma da outra, alinhadas. Faz o mesmo do outro lado do campo. Estas serão as balizas. As regras são as mesmas do jogo comum, com a diferença de que, neste, não há goleiros, ou seja, nenhum jogador pode pegar a bola com a mão. O número de jogadores de cada time fica a critério dos peladeiros.
No nosso caso, eram dois para cada lado. Um time era formado por mim e pelo Valdo Gomes. Do outro, Bith e Miguel (o mesmo da crônica sobre o Canal 100, publicada neste Rascunho em outubro do ano passado). O local dos jogos: uma estreita faixa de grama, retangular (muito retangular!), atrás de um campo de terra horroroso — inclinado, cheio de pedras — ao fundo do estacionamento da universidade. Podia não ser grandes coisas a nossa cancha futebolística, mas tinha pelo menos uma bela vista: o Maracanã.
Compramos a bola (naqueles tempos uma bola decente era muito cara, fique sabendo) e também um kit de futebol para crianças (novidade nas Lojas Americanas), do qual jogamos fora umas coisas estranhas e aproveitamos as balizas de metal, com rede e tudo.
Tínhamos jogadores, grama, bola e traves. O que mais poderíamos querer? Faltava elaborar a tabela dos jogos. A tabela dos jogos, nem me lembre! Tarefa dificílima! Imagine você como é complicado fazer a tabela de um campeonato, com jogos fora e dentro de casa, turno e returno, etc. Agora, imagine como isso é muito mais difícil se o campeonato tem apenas dois times, um único campo de jogo e ninguém quer sair prejudicado. Deu pra entender?
Não me pergunte como resolvemos, mas sei que resolvemos. Tanto que nosso campeonato — e aí você acredite se quiser — durou nada mais nada menos do que dez anos!
Amigos para sempre
Tínhamos talvez, além da vontade de jogar bola, uma sede de infinito que só podem ter os que descobrem, sem muito esforço, que serão amigos para sempre.
Jogávamos todo sábado de manhã, na sagrada graminha atrás do campo maluco. Quer dizer, os caras que jogavam naquele campo é que nos achavam malucos. Só podem ser doidos, deviam pensar, todo sábado, as mesmas duplas, naquele corredor longo e estreitíssimo. Impraticável jogar bola num lugar desses, algum deles (quem sabe o mais ponderado) pode ter comentado um dia. Mas se já desafiávamos as leis da matemática, encarar as da física era moleza.
Houve uma época em que alguém resolveu ampliar o estacionamento da UERJ e nessa dançaram o campo de terra e, de sobra, o nosso memorável estádio.
Não nos abatemos. Noutro ponto da universidade, já próximo da rampa do metrô (que não havia quando toda essa história teve início), estabelecemos nossa nova sede. A vida continuava, os atletas agora tinham outras responsabilidades e talvez não pegasse muito bem serem vistos assim, jogando bola feito meninos, mas o campeonato continuava, longo e fascinante como nunca houve nenhum, pelo menos que eu saiba.
Havia um ritual que logo no início se estabeleceu e foi seguido à risca todos esses dez anos.
Antes da partida havia sempre provocações de parte a parte. A dupla deles se achava muito técnica, como se fosse composta de dois craques do passado desfilando categoria naquela grama rala, e diziam que o nosso time só pensava em resultados, em gols, gols, gols. Respondíamos com um futebol de primeira, que aliava plasticidade e eficiência (pelo menos na nossa opinião).
O jogo era com tempo marcado (quando a bola caía na rua parávamos o cronômetro), tendo primeiro e segundo tempos. Se desse empate havia prorrogação e, persistindo o empate, disputa de pênaltis (fica a seu cargo imaginar como se bate pênalti sem goleiro).
Depois de cada partida íamos ao bar de sempre, o bar da Cris, agora desfalcado do nosso amigo Nestor, que, não se sabe por quê, abandonara precocemente a profissão. Ali, fazíamos a ata da partida. Qual fora o resultado do jogo, quem fizera gol, quem dera passe para gol, qual a jogada mais bonita, o melhor drible, a besteira do dia (essa eles ganhavam sempre), estava tudo lá, registrado.
Feita a ata, cada um dava uma nota para a performance dos outros naquele dia. Cada nota era discutida — da forma mais honesta possível — por todos e o autor poderia retificá-la, se quisesse. Dadas as notas definitivas, eram feitas as médias e eleitos, enfim, o melhor e o pior do jogo.
Só depois de elaborado todo o documento oficial é que estávamos finalmente liberados para conversar sobre outro assunto. Feito o dever de casa, estávamos agora bem à vontade para falar de… futebol.
O sábado terminava quando já anoitecia, o que quase sempre era motivo de brigas com as respectivas namoradas e/ou esposas, que raramente conseguiam entender que ficássemos os quatro naquele bar, todo sábado, o dia inteiro, discutindo detalhes de uma partida de golzinho!
Vez ou outra recebíamos algum convidado, ou mais de um. Nesses dias, o jogo era amistoso, não valendo pontos na tabela.
Ninguém lembra mais qual foi, afinal, a dupla campeã. Quer dizer, talvez não seja exatamente isso, um problema de memória. Na verdade, nunca soubemos quem foi de fato e de direito o campeão. Em algum momento as contas começaram a ficar complicadas demais, francamente!
Também não há registro, na rica história do futebol brasileiro, do exato motivo que nos levou a terminar com o campeonato. Ainda não estávamos tão velhos a ponto de abandonar o esporte, tampouco paramos por imposição dos seguranças da universidade (para eles, já fazíamos parte da paisagem), então não sei. Acabou, simplesmente acabou. Quando nos demos conta puf!, o campeonato tinha sumido, ou melhor, tinha se transformado em memória, em um longo capítulo de um livro que vem sendo escrito todos os dias, sem data certa para terminar.