O camisa 7

O Selefama virou Escadinha, encarou o Meia-Ponte e sobrou safanão para todos lados
Na pose para as fotos, o técnico Fausto resolveu alinhar os jogadores pela estatura: nascia o Escadinha Esporte Clube.
01/04/2008

Como arrumar um time para sair na foto? O mais comum é alinhar, em pé, aqueles jogadores cuja principal função em campo é defender: goleiro, laterais, zagueiros, volante. Agachados, vêm os que jogam mais à frente: armadores e atacantes.

Na época em que eu ainda jogava de verdade, valendo título de campeonato estadual, ainda havia um detalhe: em pé, as extremidades eram ocupadas pelos laterais — o direito à direita e o esquerdo à esquerda, como era de se esperar. Acontecia o mesmo com o pessoal de baixo: o ponta-direita numa extremidade e o ponta-esquerda na outra. Simples e exato como um tiro de meta.

A foto que tenho, porém, de um jogo do meu time, o Selefama, tirada em algum dia do ano de 1976, quando contava com catorze anos e disputava o campeonato goiano de dente-de-leite, mostra que nem sempre as coisas são tão previsíveis.

Como ponta-direita, meu lugar na foto era sempre o mesmo, agachadinho na ponta. Nesta, porém, não é ali que estou. Sou o segundo, agachado, da direita para a esquerda (na perspectiva de quem olha a foto). Que diabos estaria fazendo ali?, perguntei a mim mesmo quando, revirando antigos guardados, me deparei com essa pérola. E o pessoal de cima, então, nem se fala, uma bagunça generalizada. O volante onde devia estar o lateral, o lateral onde devia estar o zagueiro, e por aí vai.

Não demorou muito e a história que não se vê na foto me veio logo à memória.

Naquele ano nosso técnico, Fausto, sabe-se lá por que delírio, decidiu que as fotos antes do jogo ficariam melhores se ele montasse o time de outro modo, usando um critério até então absolutamente inédito em toda a história do futebol: a altura dos jogadores. Critério que valia, explique-se, apenas para o pessoal de trás. Quer dizer, nosso valoroso plantel de defensores se alinhava conforme a fita métrica, indo do mais baixo para o mais alto e culminando nele, o técnico.

Nas primeiras rodadas do campeonato o Selefama começou a se destacar, vencendo os considerados grandes, e por isso alguns jornais da época estamparam nossa foto nas páginas de esportes. Isso foi o suficiente para que as más línguas do modesto mundo futebolístico em que vivíamos — composto de crianças, pais, irmãos, tios e um ou outro maluco que não tinha mais o que fazer aos domingos — espalhassem pelas praças esportivas da cidade o novo apelido de nosso jovem, porém, valoroso escrete: Escadinha Esporte Clube.

Tudo bem, como atacante eu não fazia exatamente parte da escadinha, mas é claro que isso não diminuía a minha irritação quando uma torcida adversária (quando havia torcida) nos recebia aos gritos de es-ca-di-nha, es-ca-di-nha!

Nosso técnico, irredutível como uma trave de ferro (na época ainda havia algumas de madeira, que tremiam ou às vezes até desabavam diante de um chute mais forte), continuava mantendo o arranjo da foto, o que matava a gente de vergonha — repare que a cara dos atletas, principalmente os de cima, não é nada boa.

Escadinha adversária
Certo domingo fomos jogar com um time bastante enjoado, daqueles que não têm muita qualidade, sem jogadores habilidosos, sem esquema definido, mas que batalham o tempo todo e, para completar, fazem uma catimba de deixar uruguaio parecendo anjinho de primeira comunhão.

O jogo era no campo deles, do temido Balneário Meia-Ponte. Era um campo de terra, num lugar longe à beça. Não tinha arquibancada e a platéia ficava em volta, de pé ou sentada nuns tamboretes.

Quando entramos em campo o coro já esperado se fez ouvir um alto e bom som. Ignorei. Naquele dia tinha acordado com uma determinação de monge budista: vou ignorar. Queria jogar meu futebol, pronto, só isso. Não estou indo para a guerra nem nada, pensei comigo enquanto tomava café da manhã.

A primeira parte do meu plano correu muito bem. Fingi que não ouvia a cantoria dos moleques à beira do campo na hora em que o Fausto, contrariando solenemente nossas súplicas, insistiu em tirar uma foto, firme na defesa do seu curioso (para dizer o mínimo) senso estético.

Acho que ele fazia aquilo para provocar mesmo, para dar munição à torcida adversária e assim insuflar de brio nosso ânimo de pequenos guerreiros (e aí pouco importava que eu já tivesse, como disse, tomado minha decisão íntima: isso não é uma guerra, não sou um guerreiro).

Mal o jogo começou e sofri uma falta na entrada da área. O goleiro deles montou a barreira e naquele instante mínimo de espera, em que a barreira está montada e o batedor aguarda para dar um final à cena, naquela fração de segundos pude reparar que a barreira deles, por acaso, também formava uma escadinha!

Comecei a rir, sozinho. Aquilo era o máximo, será que ninguém percebia que era o máximo! Um dos caras da barreira não gostou e olhou feio pra mim.

Nosso batedor de faltas oficial era o filho do técnico (está ao lado dele na foto, é o degrau mais alto da escadinha) e felizmente não se desconcentrou com a minha risada. Também se chamava Fausto — embora fosse mais conhecido como Neném —, era um dos melhores do time e mais tarde veio a jogar nos profissionais do Guarani e depois do Palmeiras. Pois o Neném tomou distância, correu e pegou firme. Bola no ângulo. Golaço!

Logo em seguida começou meu martírio. Eu realmente não dava muita sorte com lateral-esquerdo. Vivia tendo problema com eles. Era raro um que topasse conversar durante o jogo, bater um papo mais saudável, quem sabe falar de literatura (ou de gibis, que era a minha literatura na época). Não, a maioria não queria nem saber, já entrava em campo me olhando como se eu tivesse xingado a mãe e dado um chute na bunda do pai. Francamente.

O lateral era o mesmo que havia me encarado quando ri da barreira. Chegou perto de mim e disse, babando no meu pescoço: estava rindo do quê, seu Escadinha?

Fiz que não era comigo (monge budista ponta-direita). Ele insistiu. Me desloquei para a esquerda, trocando de lugar com o outro ponta do nosso time. Ele foi atrás. Reclamei com o juiz. O juiz me mandou calar a boca e jogar bola. Não tinha jeito, precisava reagir ou aquele estrupício era capaz até de me dar uma bela de uma botinada. Então disse pra ele: e você, que joga no Meia-Ponte! Nem ponte inteira é!

Ele ficou puto da vida e disse que ia me pegar, na primeira dividida ia me quebrar! Não teve primeira dividida. Alguém começou uma briga fora do campo que acabou virando pancadaria dentro do campo mesmo. Era briga de adulto, não tinha nada a ver com a gente (eu acho). O Fausto saiu reunindo seus filhotes e mandou todo mundo entrar na kombi. O juiz estava meio baratinado no meio daquela confusão toda, alguém deu um tiro pra cima e quando vi o juiz estava do meu lado, dentro da kombi, branco que nem um fantasma.

O Fausto mandou o motorista sair logo dali e fomos embora, nosso time e o juiz.

A história poderia ter terminado aí mas não terminou. A Federação anulou a partida e marcou outro jogo, em campo neutro.

Com a camisa 9
Fomos jogar num lugar mais aprazível, um campo de grama, com algumas árvores em volta. Nas laterais havia pequenas arquibancadas de alvenaria, de duas fileiras. Quase vazias, falei comigo, rendendo graças aos céus.

É justamente deste segundo jogo a foto que tenho. Na véspera da peleja, nosso centroavante pegou uma gripe de dar dó e não pôde jogar. O reserva estava machucado e sobrou pra mim. O Fausto disse, enquanto a gente fazia aquecimento no vestiário: você vai de centroavante hoje, e me deu a camisa 9, ao invés da minha velha amiga camisa 7.

Na minha posição entrou um garoto que estava estreando no time (infelizmente não me lembro mais do nome dele). Tinha treinado umas duas ou três vezes só. Era veloz e o Fausto quis testá-lo ali, me deixando pelo meio da área.

Quando os dois times estavam em campo, reparei logo que o lateral-esquerdo do Balneário Meia-Ponte não era o mesmo da outra partida. Talvez o titular estivesse machucado, sei lá. A bola rolou e logo no primeiro lance toquei para o nosso ponta, que deu um drible seco no lateral e levou uma pancada de levar defunto às lágrimas.

O jogo continuava e a distância eu percebia cena parecida com a que tinha vivido no domingo anterior: o lateral deles ameaçando o nosso ponta. Foi assim o jogo todo, o garoto que me substituiu naquele setor do campo sofreu noventa minutos com aquele lateralzinho endiabrado. No final, o lateral acabou expulso.

Terminou em 0 x 0 aquele jogo. Já no vestiário, fui conversar com nosso mártir do dia.

O cara te pegou mesmo, hein?, eu disse, dando um tapinha no ombro dele. E o nosso ponta: não entendi nada, o lateral ficou o tempo todo dizendo que o amigo dele ficou doente mas ele ia resolver tudo, ia resolver tudo mesmo. Resolver o quê?, perguntei. Sei lá, resolver alguma coisa, ficou me xingando, dando pontapé por trás, e toda hora dizendo que ia se vingar e tal, que o outro tinha contado tudo pra ele, de meia ponte, ponte inteira, não entendi nada.

Fiquei calado.

E ainda teve mais, ele continuou, teve uma coisa que não entendi de jeito nenhum. O que foi?, perguntei. O lateral me chamou de Flávio. Continuei calado (monge budista no vestiário). E o nosso ponta arrematou: mas Flávio não é você?

Era, era eu. E aí se entende como é importantíssima a numeração nas camisas dos times de futebol.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

Rascunho