Em agosto deste ano estive em Havana, a convite da Casa de Las Américas, num encontro sobre Machado de Assis. Algumas semanas antes de embarcar, escrevi para o Jorge Fornet, um dos organizadores do evento, perguntando sobre a possibilidade de se organizar um jogo de futebol num intervalo qualquer entre as palestras e debates ou mesmo depois, no final de semana.
Não estranharia se ele respondesse que seria mais fácil Cuba se tornar um país capitalista do que atender ao meu pedido. Mais contido do que isso, mas sem deixar de lado seu bom humor, ele me respondeu que seria uma missão impossível marcar um jogo em Havana que não fosse de beisebol. De todo modo, se eu não conseguisse, poderia pelo menos escrever uma crônica sobre como não joguei futebol em Cuba, ele sugeriu.
Tentei como pude mas nem os colegas brasileiros presentes ao evento nem os próprios cubanos me levaram muito a sério.
O encontro terminou na sexta-feira e no sábado planejava rever alguns lugares da cidade por aonde passara muito rapidamente. Quando, no entanto, desci para o café da manhã, a recepcionista avisava a todos que devíamos fazer as malas e ficar a postos, pois a qualquer momento o hotel poderia ser evacuado. O furacão Gustav estaria passando por Havana naquele sábado e devíamos nos preparar para trocar o hotel por outro mais seguro, talvez noutra cidade.
Mais tarde fomos informados de que não haveria necessidade de mudança, podíamos desfazer as malas. De todo modo, a defesa civil determinou que ninguém saísse às ruas e o pessoal do hotel pediu que ficássemos sempre num lugar onde alguém da recepção pudesse se comunicar conosco (farejando uma idéia para um romance policial, erótico ou de terror, fiquei imaginando em que lugar de um hotel alguém poderia ficar incomunicável).
Obrigado a permanecer ali o dia todo, tirei da mochila o meu inseparável caderno espiral (tipo pequeno e, confesso, com o homem-aranha na capa), pedi logo ao garçom do bar um mojito (com pouco açúcar e caprichado no rum) e me preparei para seguir o sábio conselho do Jorge Fornet.
Afinal, com mais uns dois goles daquele mojito soberbo, seria capaz de escrever até sobre a influência da lua nas plantações de tabaco, que dirá escrever sobre o nada, quer dizer, sobre o jogo que não houve. Escreveria sim a crônica, ora essa, nem que para isso precisasse lançar mão da pena da galhofa e da tinta da melancolia, como diria o velho Brás Cubas.
Turismo-catástrofe
Chovia e ventava muito. Árvores balançavam com força, as raízes se segurando como podiam, e as pessoas do hotel se amontoavam nas enormes vidraças para ver o que se passava lá fora, quem sabe torcendo para ver um carro velho dando cambalhotas ou uma cantora cubana de charuto na mão voando pelos ares. Me lembrei do que havia lido fazia tempo num jornal, depois de uma enchente que quase destruiu a cidade de Goiás, uma matéria sobre uma nova modalidade turística: o turismo-catástrofe.
Tentei voltar para o meu caderno quando um garoto de uns doze anos de idade entrou feito um foguete pela porta da recepção, fazendo um barulho danado e quase se estatelando no chão escorregadio. O segurança quis colocá-lo para fora mas o menino — de calção, camiseta, tênis imundo e com uma bola de futebol nas mãos — pediu por favor para ficar ali, protegido da chuva e do vento.
Me levantei, caminhei até o porteiro e intercedi a favor do pirralho, que me agradeceu com um sorriso maroto e foi se sentar no chão mesmo, num cantinho da recepção onde não havia ninguém, bem lá no fundo, com sua bola no colo. Era uma bola oficial, de couro, mas muito maltratada. E meio murcha também.
Percebi que ele olhava para a rua o tempo todo, pela vidraça. Perguntei se estava preocupado com o furacão. Não, ele respondeu, já estava acostumado. E esse Gustav nem passaria por Havana, ele me afirmou convicto. Como é que você sabe, viu na televisão? Não, não gosto muito de televisão. Então como foi? Meu tio me disse. Seu tio? É, meu tio, ele disse que o furacão vai passar só pelo sul da ilha. Mas o noticiário está mostrando que ele vai passar por Havana também. É, mas meu tio falou que ele vai apenas soprar de leve no rosto da cidade, como se fosse um carinho.
E completou: o pior vai vir depois, o Gustav é só um mensageiro, o furacão de verdade ainda não chegou. Foi seu tio quem disse isso também? Foi, ele entende tudo de furacão, e de futebol.
Quis saber o nome do menino. Diego, ele respondeu, e emendou sem que eu tivesse perguntado: e jogo no gol! É mesmo? É, ninguém gosta de ser goleiro mas eu gosto.
Perguntei por que ele estava com a bola, se tinha acabado de chegar de algum jogo. Ele então me revelou que era exatamente este o problema: ele não tinha chegado, ele ainda iria para o jogo. Os amigos haviam marcado uma partida contra um outro time. Entendi que ele estava se referindo ao que no Brasil a gente chama de jogo-contra, que é quando os garotos de uma turma se reúnem não para a pelada de todo dia mas para algo bem mais importante: um jogo contra outra turma.
E se você não sabe, vai saber agora: jogo-contra é algo muito, mas muito sério mesmo! É marcado com antecedência e envolve mais do que os próprios jogadores. Tem a torcida (formada pelos meninos que não jogam mas gostam de assistir e, principalmente, as namoradas ou as meninas que estão na mira dos fogosos atletas) e de vez em quando tem até algum adulto assistindo. Via de regra, porém, os adultos não são convidados para um jogo-contra. Até porque não se trata de jogo de escola, com todo mundo uniformizado, arrumadinho e tal, jogo-contra é em campinho de terra ou de grama ruim, é jogo de rua, e às vezes sai até briga.
Patrimônio da humanidade
Naquele momento, conversando com o Diego, finalmente confirmei uma antiga teoria, rebatida no Brasil por peladeiros nacionalistas: o jogo-contra tem uma dimensão internacional, é um patrimônio da humanidade!
O menino não estava nem aí para o furacão. O tio dele, aliás, já havia dito que não haveria problemas e mesmo que houvesse ele já estava acostumado. A questão era que, com aquela chuva e aquela ventania toda, talvez não tivesse o jogo-contra. Isto sim, era um problemão.
E o pior de tudo: haviam combinado de se encontrar lá no campinho mesmo e o Diego era o dono da bola. Ele me disse isso, que era o dono da bola, e com orgulho a estendeu pra mim, perguntando se eu não a achava bonita. Sim, concordei, muito bonita.
Então, pedindo que eu aproximasse o rosto, disse no meu ouvido: posso lhe contar um segredo? Fiz que sim. Sabe por que resolvi ser goleiro? Não, respondi. Porque não gosto de maltratar a bola. Como assim? Não gosto de chutar a bola, entendeu?
Eu tinha entendido. Aquilo era poesia pura. Ele não poderia ter contado seu segredo para ninguém a não ser para um estrangeiro que provavelmente ele nunca mais veria de novo. E seu segredo era que jogava no gol porque assim poderia tratar a bola com carinho, com as mãos. E poderia até abraçá-la às vezes, quando o chute do adversário pedisse que ele a encaixasse com firmeza.
Pensei em lhe dizer que a bola também pode ser tratada com carinho pelos pés, muitos craques fizeram e fazem isso. Pensei mas não disse. E nem foi apenas para preservar a bela história do Diego, foi também porque fomos interrompidos por um bando de garotos do lado de fora, que chegaram não sei de onde e começaram a bater na vidraça, bem perto de nós.
Diego se levantou de repente. Eram os seus amigos, os caras do seu time que estavam ali, fazendo gestos para que saísse logo, o que estava fazendo escondido no hotel?
A chuva e o vento haviam diminuído e Diego já corria na direção da porta de saída quando de repente parou e voltou até onde eu estava. Me deu um abraço apertado e foi correndo se encontrar com os amigos.
Eu sabia onde era o campinho, já havia passado por lá algumas vezes naquela semana e tinha visto algumas crianças jogando bola (provavelmente o Diego estava entre elas). Meu primeiro impulso foi ir atrás dele mas hesitei. Não estou acostumado com furacões nem tenho um tio que entende tudo sobre eles. Fiquei por ali mesmo, com meu caderno, imaginando o que escrever sobre meu pequeno amigo cubano.