Sonho a gente não escolhe. Você está andando à toa na rua, distraído, pensando na vida, e de repente acontece: um sonho vem e atropela você. Aí pronto, aquilo que entrou na sua cabeça sem pedir licença não vai sair tão cedo, nem você pedindo com jeitinho.
Descobri isso na escola, quando tinha catorze anos. A professora de redação tinha pedido que escrevêssemos sobre o tema “Meu grande sonho”. Naquela época não poderia supor que se tratasse de tema tão pouco original, me cabia apenas dar conta da tarefa, sem maiores divagações. Anos mais tarde, em tempos de vacas magras e obrigado a corrigir redações para um colégio particular, me deparei com uma montanha delas cujo tema era justamente aquele da minha infância. E no meio daquelas linhas tortas surgiu uma pérola. Um garoto preencheu o espaço vazio da folha de papel com apenas uma frase: “Meu grande sonho é poder realizá-lo”.
A redação era só isso, sem mais, apenas esta maravilha do nonsense, poesia em estado bruto.
Naquele dia distante, porém, sentado diante do caderno, não me veio frase tão inspirada. Peguei o lápis disposto a simplesmente escrever a verdade. Até então estava claríssimo para mim qual era meu grande sonho: ser jogador profissional de futebol. Minha breve carreira (tinha começado a jogar em time com onze anos) contava já com um título de campeão estadual, categoria Tampinha, e isso de alguma forma servia de lastro ao sonho, impedindo que ele voasse sem destino até sumir nas nuvens, como tantos outros.
Além disso, uma tia-coruja que sempre assistia aos meus jogos dizia que eu tinha futuro. Obviamente não me passava pela cabeça que aquela podia ser uma opinião bem pouco confiável, a começar pelo fato de que ela entendia tanto de futebol quanto eu de física quântica. De todo modo, o sonho permanecia ali, alimentado a pão e água, tudo bem, mas pelo menos sem morrer de fome.
Levantei o lápis e quando ia escrever a primeira letra me deu um branco. O braço permaneceu levemente levantado, a mão no ar, segurando o lápis, como se de repente eu estivesse num filme e alguém congelasse a imagem. A professora se aproximou e perguntou o que estava acontecendo.
Nada, estou pensando, respondi. Ela deu um sorriso de aprovação, como se dissesse: bom menino, pensando antes para não escrever besteira. Mas não era isso o que havia acontecido. Eu simplesmente fora transformado em estátua pela chegada de um sonho novo, que lançou de uma hora para outra seu raio paralisante sobre mim. Aquilo deve ter durado segundos mas na minha memória consta que levou séculos.
Quando finalmente minha mão desceu sobre o papel, o que saiu foi: “Meu grande sonho é ser escritor”.
De onde tinha vindo tamanha maluquice? Hoje penso que talvez do meu pai, que era (ainda é) um desses típicos contadores de histórias que raramente se vê por aí. Meu pai emendando um caso no outro, e todo mundo em volta ouvindo com atenção, sem desgrudar os olhos e os ouvidos da figura dele. Ou podia ser também da minha mãe, dizendo que minha letra era muito bonita e elogiando as histórias que eu escrevia. Na verdade, e ela sabia disso, o que eu fazia era chegar em casa e reescrever no caderno as histórias que a professora contava na escola.
Depois meu pai, que na época era professor de datilografia, batia tudo a máquina, minha mãe costurava as folhas com agulha e linha e então criávamos a capa com recortes, colagens, etc.
Pode ser que fosse isso, não sei. O que sei é que naquele dia um segundo sonho resolveu medir forças com o primeiro e minha cabeça virou um ringue, com um socando de cá, outro de lá, e eu ali no meio, só recebendo bordoada.
Até os meus dezoito anos, os dois sonhos foram obrigados a dividir espaço. Num dia em que eu jogava bem, fazia gol e tudo, o sonho de ser jogador ocupava a janela naquele ônibus imaginário. Se a professora de redação me dava dez com estrelinha — a estrelinha era um adesivo que ela comprava não sei onde (nunca ninguém soube) —, o sonho de ser ponta-direita num time grande era empurrado para o corredor pelo sonho de escrever um daqueles livrões enormes que eu via na sala da diretora.
E houve vezes em que os dois iam tão mal das pernas que dava empate. Um empate sofrível, em que os dois perdiam.
Por exemplo, no dia em que errei um gol feito, aos 44 do segundo tempo, na final de um torneio em Brasília. A bola veio cruzada da esquerda, rasteira, passou por todo mundo, o zagueiro furou, o goleiro deixou passar e a bola sobrou limpinha na minha frente, quase na linha do gol. Era só tocar e correr pro abraço. Mas não sei o que houve, me desconcentrei e quando dei por mim a bola já tinha passado e saía pela linha de fundo.
Ouvir todo mundo me xingando nem foi o pior. O pior foi escutar o massagista dizer para o técnico, no vestiário (ele pensou que eu não estava ouvindo mas estava sim, ouvi tudo debaixo do chuveiro): esse menino até que leva jeito, mas de vez em quando apaga, some no jogo, parece que está no mundo da lua. E arrematou: parece poeta.
Aquilo doeu, sinceramente. O que o nosso massagista estava dizendo, em outras palavras, era o seguinte: para jogador, esse aí não serve.
Mas se ele disse que eu parecia poeta, era de se esperar que nessa hora o sonho de ser escritor se achasse o cara. Poderia ter acontecido assim, claro, se logo no dia seguinte, bem cedo, eu não chegasse na escola e recebesse das mãos da diretora o resultado do meu teste vocacional.
Tinham contratado uma psicóloga para fazer esse teste com a gente, era meio moda na época. A moça tinha feito várias perguntas para cada um de nós, além de ter pedido alguns desenhos: uma casa, uma árvore, uma pessoa da família, coisas assim. Li o resultado do meu teste e aquela foi uma experiência que a psicóloga, se estivesse ao meu lado na hora, chamaria de traumática.
Não me lembro de tudo que havia naqueles papéis. Para ser sincero, só me lembro mesmo, com certeza, de uma frase, colocada na parte em que a psicóloga anotara o que não combinava com nossa personalidade, em termos de vocação profissional. E a frase dizia: desaconselhamos qualquer atividade ligada a redação.
Isso não é exatamente o que um aspirante a escritor desejaria ouvir. Devo ter escrito algo muito horrível no meu teste, devo ter cometido erros de português gigantescos, homéricos, imperdoáveis! Nada de redação, meu filho, vai tentar outra coisa na vida, era o que ela estava querendo dizer.
E nessa peleja interminável meus dois sonhos foram se batendo todos os dias, até que chegou o momento do apito final.
No ano em que completei dezoito anos, ou me profissionalizava como jogador (aquela idade era o limite da categoria Juvenil, a última das categorias de base daquele tempo) ou pendurava as chuteiras. Por outro lado, precisava decidir o que iria estudar na faculdade, e onde — se em Goiânia, onde morava, ou num centro maior.
Foi então que recebi um convite do Guarani, de Campinas. Dois anos antes, em 1978, o Guarani tinha sido campeão brasileiro. O time estava em alta e resolveu investir em garotos de fora do eixo Rio-São Paulo. Era um convite para jogar no profissional!
Poucos dias depois, recebi um telefonema dizendo que eu havia vencido um concurso importante, do governo do estado de Goiás. Um concurso de contos.
Precisava decidir, e precisava ser rápido.
Venceu o sonho de ser escritor. Fiz vestibular para Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Me mudei para lá no ano seguinte. Fui para a cidade grande sem conhecer ninguém, sem parentes nem amigos, apenas com a cara, a coragem e o sonho de ser escritor viajando contente na janela do ônibus.
Mais de uma vez me arrependi. Poderia ter sido um jogador de futebol medíocre, poderia ter quebrado a perna e abandonado a carreira, poderia ter sido marginalizado por uma panelinha qualquer de time grande. Tudo isso poderia ter acontecido. Mas também poderia ter dado certo. A verdade é que, qualquer que tivesse sido a decisão, iria sempre ficar faltando um pedaço. Um dos sonhos viria sempre cobrar sua parte. Fazer o quê? Como diria João Saldanha, dando de ombros: vida que segue.