Há mais afinidades entre futebol e literatura do que sonha nossa vã filosofia. E se na época de Shakespeare os ingleses já tivessem inventado o futebol, ele certamente teria sido tema de um dos sonetos do poeta. Ou quem sabe teria feito parte de alguma de suas tragédias. Ou das comédias, tudo bem.
Como o futebol, a literatura também é um jogo. E como jogo, tem suas regras. Você pode transgredir uma ou outra mas não vai poder transgredir todas. O escritor inventa dentro de certos limites, a começar pelos próprios limites da língua. Guimarães Rosa burlava algumas regras da gramática oficial, mas o que ele escrevia, claro, era português. Na verdade ele criava uma gramática própria, com leis próprias, quer dizer, inventava um jogo — com as regras que ele mesmo foi criando e que o leitor aceitou.
É importante isso, leitor e escritor precisam entrar num acordo sobre as regras. Quer um exemplo? Você está lendo um romance policial, buscando descobrir por sua conta quem é o assassino, e de repente, no final do livro, o narrador revela que é Fulano, que não tinha nada a ver com a história. O assassino não pode vir assim, do nada, não pode cair de pára-quedas no final do romance. Se isso acontece, o leitor vai ficar uma fera. Por quê? Porque o autor trapaceou. Leitor não perdoa trapaça de autor, pode ter certeza.
E há algo que liga as regras do futebol às regras da literatura. São ambas da mesma natureza, digamos assim. São feitas para permitir a entrada do imponderável. Pense na regra do impedimento. Ela é aparentemente simples e diz, em outras palavras, o seguinte: quando a bola é lançada, o jogador que a recebe tem que ter, entre ele e a linha de fundo, pelo menos dois jogadores adversários. Depois começam as complicações. Se a bola vem de um arremesso lateral, não tem impedimento, se o jogador que recebe o passe está atrás da linha da bola, também não tem, e por aí vai.
E o mais importante: o impedimento deve ser identificado exatamente na hora em que o jogador dá o passe. Em alguns casos, é humanamente impossível o bandeirinha ver isso. É tudo muito rápido e só mesmo o olho da câmera de televisão consegue detectar o impedimento. É uma regra feita para criar o inesperado. Tudo pode acontecer nessa hora, inclusive um gol mal anulado, que represente a perda do título do campeonato.
Outra coisa: a maioria das regras do futebol depende da interpretação. É a leitura feita pelo árbitro que determina se um zagueiro atrasou intencionalmente ou não a bola para o goleiro (e aí ele não pode pegá-la com as mãos), ou se o atacante colocou a mão na bola de propósito e fez o gol da vitória, ou se aquele carrinho merecia cartão vermelho, amarelo ou só uma advertência verbal e passar bem. Resumindo, no futebol, como na literatura, tudo depende de como se lê.
No futebol e na literatura as regras funcionam apenas para tornar possível a chegada do imponderável. Um bom romance é aquele que você sabe como começa, mas não sabe como vai terminar. Se já sabe, nem vale a pena ler. Um bom romance é uma caixinha de surpresas. Uma partida de futebol é a mesma coisa, com a vantagem, do futebol, de que mesmo uma partida ruim é imprevisível, ao contrário de um romance.
E o tal do montinho artilheiro? Tentaram mandá-lo mais cedo para o chuveiro criando gramados perfeitos, que aparentemente evitam um quique inesperado da bola e o engano, fatal, do goleiro. Mas mesmo em campo bom não há uma ou outra falha, ainda mais se estiver chovendo? Montinho artilheiro é pura literatura.
Quando algo inexplicável acontecia num jogo, o grande Nelson Rodrigues dizia tratar-se de intervenção de uma entidade chamada Sobrenatural de Almeida. Se uma bola indefensável de repente morria nas mãos do goleiro, tinha sido por obra e arte do Sobrenatural de Almeida. Se um chute completamente torto de uma hora para outra mudava de trajetória e a bola ia se aninhar no fundo das redes, o goleador era ele, o Sobrenatural de Almeida.
O montinho artilheiro não precisa de tanto. Basta estar ali no campo mesmo, sem ajuda do além. E ainda hoje ele continua aprontando das suas, ajudando a criar a fantasia, rindo de quem acredita ser possível abolir as artimanhas do acaso.
Na copa dos Estados Unidos, uma emissora de televisão convidou um americano para ver, pela primeira vez na vida, uma partida daquele estranho esporte. O jogo terminou 0 x 0 e esta foi a primeira surpresa do inocente espectador: como pode um jogo de noventa minutos terminar sem pontos para nenhuma das duas equipes? Como pode um jogo terminar sem vencedor? Ele certamente estava acostumado com o basquete, o futebol americano, o baseball, onde isso jamais aconteceria. E quando perguntado, afinal, o que tinha achado da partida, respondeu: parece um jogo de xadrez.
Ele estava certo, com relação àquela partida. Às vezes o futebol pode ser isso mesmo, um jogo de xadrez. Às vezes não, é uma rodada de pôquer, uma partida de damas, um jogo-da-velha. E sendo tudo isso, é mais do que isso, justamente devido ao imponderável — venerando senhor a sobrevoar as partidas, dando apenas ao final o seu implacável veredito.
Agora, os poetas me expliquem: o que era um drible do Garrincha? Quando o Mané pegava a bola e ficava estático, na frente do marcador, todo mundo sabia o que iria acontecer. Até a mãe do juiz, se estivesse no estádio, saberia. E ainda assim o drible acontecia. Exatamente como previsto. E o impressionante é que algo naquele drible soava como absolutamente inesperado, como uma grande novidade, um lance jamais visto. Como podia um drible ser tão inédito e tão familiar? E como aquele anjo torto, gauche de chuteiras, conseguia tal façanha com suas pernas tortas (as duas para o mesmo lado)? Garrincha dominava — como Bandeira, como Drummond — a arte da simplicidade. Sabia que do simples podem brotar o sonho e a alegria.
Romário, um grande frasista, disse certa vez: Pelé, calado, é um poeta. A frase obviamente não tinha nada de elogiosa, era um revide à afirmação de Pelé de que Romário devia se aposentar (tudo isso aconteceu bem antes do milésimo gol). Como ocorre, porém, com um poema, o alcance do que se diz pode ser bem mais amplo do que imagina seu autor. Romário, sem querer, acertou na mosca. Diria que acertou noutra mosca. Pelé falava e fala, fora de campo, coisas questionáveis, mas dentro dele era um poeta. Poeta não de palavras mas de passes, dribles, gols antológicos.
E caso o leitor ainda não esteja convencido de que futebol e literatura são pouco mais que bons amigos, deixo-lhe uma pergunta final, para reflexão profunda, na solidão do travesseiro: como definir um passe de letra?