Como se diz

As muitas expressões — engraçadas, estranhas, inusitadas — que cercam o mundo do futebol
Ilustração: Marco Jacobsen
01/11/2007

Não sei se você já parou para pensar num tema profundíssimo, que mereceria sem dúvida páginas e páginas de estudo por parte de sábios pesquisadores país afora: as palavras e expressões utilizadas no futebol.

Há dentre elas uma em especial, que me encantou desde a primeira vez em que a ouvi: ao apagar das luzes. Fulano fez um gol ao apagar das luzes. O atacante que aos 44 minutos do segundo tempo faz o gol da vitória não é apenas o herói do seu time. Tampouco o estádio é um mero espaço para o delírio coletivo numa noite qualquer.

Nada disso. O estádio agora é um teatro monumental, o artilheiro é um tenor e seu gol é nada mais nada menos do que um último dó de peito antes que as cortinas se fechem e novamente se abram para que o artista, comovido, receba os aplausos extasiados da platéia, ao apagar das luzes.

E se o gol foi bonito será chamado de gol de placa. Ou quem sabe gol antológico. Se foi difícil, dirão que foi um gol impossível. E se foi muito, mas muito difícil, algo que acontece de mil em mil anos, dirão os entendedores: aquele foi um gol espírita. Se, no entanto, bastou ao atacante tocar a bola para o gol vazio, há de haver algum invejoso dizendo: esse até a minha sogra fazia.

Há também expressões exatas como um teorema. Nelson Rodrigues era mestre no assunto. Se um torcedor, por exemplo, se sentia indignado com algum erro do árbitro, Nelson não dizia que o sujeito estava danado da vida ou arrancando os cabelos ou carregado de fúria. Não, estas seriam palavras usadas pelos reles mortais. Nelson dizia: o pobre coitado subiu pelas paredes como lagartixa profissional.

Dizem também que é dele uma outra preciosidade. É um monumento à exatidão o modo como foi definido aquele tipo de jogador franzino que corre pelo campo todo, corre sem parar durante noventa minutos, corre às vezes mais do que a bola (nesses momentos a bola até parece um detalhe). Eis a definição: coelhinho de desenho animado.

As palavras e expressões ligadas à bola de futebol mereceriam um capítulo à parte. Você que se considera uma sumidade no assunto responda: quantos sinônimos para bola você conhece? No seu clássico Dicionário de futebol, Haroldo Maranhão apresenta trinta e oito.

A bola pode ser tratada de forma carinhosa, quase infantil: gorduchinha, boneca, criança, menina, bichinha, neném. Ou de modo passional: infiel, caprichosa, enganosa, demônia. Pode ser definida por sua forma ou matéria: redonda, esfera, pneu, número cinco, caroço, castanha, pelota. Ou por sua natureza feminina: nega, maricota, leonor, maria, ela, guiomar, margarida, moça.

Isso, digamos, no seu estado de inércia. Em movimento, durante uma partida de futebol, ela assume outras identidades. Se é o craque que a ela se dirige, a bola é chamada de você, de meu bem. Se, no entanto, quem busca o diálogo não tem com ela a mínima intimidade, se é um perna-de-pau que não deixa dúvidas, a bola é no mínimo Vossa Excelência.

E se um de seus vários nomes é “perseguida”, às vezes a história se inverte e a bola passa a ser a perseguidora. É então que se diz que Fulano está apanhando da bola. É preciso, nesses casos, que alguém com mais habilidade trate de arredondar a bola, o que parece absurdo mas não é, se você imaginar que alguns jogam uma bola bem quadradinha.

Há situações em que a bola assume nomes absolutamente delirantes para quem não sabe do que se trata, ou até para quem sabe e pára um pouco para pensar no que está dizendo. Senão vejamos: bola com açúcar, bola no fogo, bola corrida, espirrada, limpa, pingada, trabalhada, venenosa (esta então você deve evitar sempre que quiser comer a bola).

Agora imagine que você está em campo, em pleno jogo, e vai bater uma falta na entrada da grande área do time adversário. Um companheiro de time se aproxima, coloca a mão no seu ombro e sussurra no seu ouvido: chuta na orelha dela. Se você está lá nessa hora e se lhe deixaram bater a falta, é porque entende o que o outro disse e portanto não vai dar o vexame de perguntar: na orelha de quem?

Se, ao bater a falta, ela tocar na trave, alguém de fora poderá dizer, levando as mãos à cabeça: caramba, essa beijou o poste! Se a bola que você chutou tiver passado bem perto do gol antes de sair pela linha de fundo, é bem provável que se ouça: rapaz, essa tirou tinta da trave! E apesar de tudo isso ao final do jogo as traves estarão lá, intactas, sem falha de tinta ou marca de beijo.

Agora, se você fez o gol e deu a vitória ao seu time, é quase certo que vai rolar um bicho. Se você jogasse nos tempos de antigamente, quando os cartolas da época tiveram essa idéia (inspirados no jogo do bicho), o dono do seu time poderia lhe dar, pelo gol e pela vitória, um cachorro (5 mil-réis), um coelho (10 mil-réis), um galo (50 mil-réis) ou quem sabe até uma vaca (100 mil-réis), se o jogo fosse decisão de campeonato.

Numa crônica publicada no Jornal do Brasil em 1995, Sérgio Noronha conta que Pelé dormia antes dos jogos. Dormia na concentração, no vestiário, no ônibus, onde fosse. E se algum jogador do time fizesse barulho, havia sempre outro a dar a bronca: não acorda o bicho. O bicho, no caso, não era exatamente o Pelé, mas a grana que ele significava com seus gols.

Se o goleiro sobe bonito e faz uma defesa sensacional, você pode ouvir o narrador do jogo, na televisão, dizer que o goleirão foi buscar a bola no segundo andar. Se o zagueiro brutamontes dá uma entrada violenta no centroavante, alguém vai dizer que o cara abriu a caixa de ferramentas. Se a bola entra na grande área, diz-se que ela está na zona do agrião (esta, confesso que nunca entendi).

E se você nunca ouviu falar dessas expressões, não se preocupe. Isso não é nem de longe motivo para você se achar um bola murcha.

São expressões cunhadas em épocas diversas, algumas ainda valem até hoje, outras ficaram paradas no tempo. Há em todas algo da necessidade que o apaixonado tem de dar nome às coisas que giram em torno da sua paixão. De certa forma, dar um nome é uma tentativa de entender, de desenhar o contorno do invisível, do intocável. E antes que a crônica desambe para a filosofia, embolando o meio de campo, é bom parar por aqui, ao apagar as luzes.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

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