Lazarillo de Tormes, famoso romance pícaro anônimo espanhol que marca a literatura mundial em vários níveis, agora tem companhia brasileira. Não circula mais solitário pelas livrarias e bibliotecas, ou até pelos olhos do leitor. Seu companheiro chama-se Big Jato, romance do cearense Xico Sá. Filho do Crato, nos Cariris, Xico pertence a uma geração de escritores que escolheu o Recife para o exílio e inclui, entre outros, Ronaldo Correia de Brito, Everardo Norões, Samarone Lima, Heitor Brito, Telma Brilhante e Sidney Rocha.
Enquanto o espanhol Lazarillo é um menino guia de cego, o personagem de Xico trabalha com o tio na limpeza de fossas naquela cidade cearense, vivendo as estripulias do trabalho com outros personagens através dos pequenos capítulos produzidos pelo narrador, que não é outro senão o próprio menino limpador de fossas, sem a forçação dos flashbacks tradicionais.
No prólogo, o narrador adverte logo: “Aprecio deveras aquela falsa pista do camarada B. Traven, o fantasma americano perdido na selva mexicana, que dizia mais ou menos assim: ‘De certa forma, uma história não significa nada a menos que você mesmo a tenha vivido’. Dizia isso na sua ficção Viagem noturna”.
E continua: “A história que vem a seguir também é verdadeira. Estiquei ao máximo a corda de verossimilhança. Quase no pescoço. Se falhei, coisas da vida, caro Kurt Vonnegut. Se inventei um ‘pueblo’, sorte (…) É a única herança”.
Talvez o narrador tenha dúvidas, é possível — até porque o prólogo não está assinado. Corre o risco de passar por anônimo, como ocorreu com o antecessor espanhol. Mas se inventou um pueblo, não é a única herança. É a grande herança. Não é sempre que um escritor inventa um pueblo e chama os leitores para a vida.
O livro é narrado em forma didática, como convém a todo romance pícaro: desde o prólogo, seguido de “O velho”, depois “O menino”, numa montagem que, por extensão, lembra a estrutura de Vidas secas, de Graciliano Ramos — advertindo-se que Xico, no entanto, tem identidade própria, com recursos individuais, apresentando-se ao leitor como um escritor virtuoso, de caminhos já definidos, ótimo criador de personagens, com estilo limpo, claro e objetivo, elegante e forte. Sem dúvida, uma estréia surpreendente no romance. Surpreendente porque nem sempre um livro de estréia apresenta tantas qualidades quanto as encontradas em Big Jato.
Além disso, Xico tem a coragem de abrir a narrativa com um perfil físico, dando alguma lentidão à narrativa, quando muitos narradores preferem uma cena, cuja velocidade é inquestionável. É assim o perfil físico que dá largada ao romance:
Pensando bem, o velho nem era tão velho assim, apesar de corroído pela ferrugem que torna um filho de Deus aparentemente mais enfezado do que o outro.
À primeira vista, os buracos dos olhos do velho eram tão profundos quanto a ilusória superfície dos copos dos engana-bêbados nos quais emborcava a sua aguardente. Óculos verdes fundo de garrafa, iguaizinhos ao pára-brisa do Big Jato, envidraçavam ainda mais o horizonte. Treze graus de miopia e astigmatismo no lado direito, doze no canhoto.
Observem que o começo da narrativa permanece no campo da descrição, enquanto o leitor espera que o velho caminhão dos personagens dê partida. Mas sem aborrecimento, ansiedade ou cansaço. O texto se impõe pela força do narrador. E é justamente este perfil que vai seduzi-lo para a exata compreensão do velho, com tudo o que ele tem de risível e de simpático, apesar dos resmungos e do lema radical — “Quem não reage, rasteja” — que o conduzirá pelo resto da vida em meio a estripulias, bravatas e confusões.
“O menino”, porém, chega em meio a uma ação, que lhe dá movimento e vigor: “Dirigido por mim, guiado por Deus. Quando eu subo na boléia, não sou um, nem o outro, como está escrito no pára-choque. Sou ainda o nadinha de nada”.
E estes são os dois personagens que estarão com o leitor pelas próximas 180 páginas, marcadas pelo risível, pela gargalhada e pelo drama. Até porque Xico não perde a linhagem da prosa hispânica, marcada pela dramaticidade dos seus personagens e pelos movimentos. Assim, pode-se perceber sempre uma sombra em meio à risada, à ironia fina e à leveza das ações. Dramático e sombrio, em meio ao pícaro e ao risível, é, por exemplo, este texto muito bem escrito: “Aqui nem o cemitério zela pelos assombros dos mortos. Mal os infelizes descem os sete palmos de terra a que têm direito e já partem para outros mundos. Os vermes reclamam de tal rapidez. Os tatupebas, conhecidos comedores de defuntos, idem, nem fuçam com esmero e só avistam a subida do vulto azul e o latido do cachorro na beira da cova”.
No entanto, o autor mantém a força dos perfis, sempre que precisa trazer um personagem rigoroso, austero e firme, optando na maioria das vezes pelo perfil psicológico, que se aproxima da ação e muitas vezes até substitui o movimento interno, muito mais rico porque anunciado por marcações também risíveis.
Quem vai agüentar este calor da moléstia, que faz com que a gente nunca saiba quando está acordado ou quando está sonhando mesmo? Melhor o limbo. Quem vai agüentar as poucas e repetidas conversas com finais incertos? Nunca ouvimos alguém aqui com conversa de começo, meio e fim, uma fala inteira. É só fiapo de fala. Nada tece.
Acompanhando palavra por palavra as histórias desses dois grandes e belos personagens, chegamos a uma conclusão definitiva: já no seu romance de estréia, Xico Sá deixa claro que nasceu para a ficção, e se realiza como tal. Basta lê-lo sempre e atentamente. A capacidade para a ironia e para o riso todos nós já conhecemos, tanto nas colunas de jornal como nos livros publicados.