Uma prosa bela, densa e iluminada

Por uma destas trapaças do destino literário — naturalmente provocada pelos equívocos de nossa política editorial —, o grego Nikos Kazantzakis continua um desconhecido dos leitores brasileiros
Nikos Kazantzakis, autor de “O capitão Mihális (Liberdade ou morte)”
01/03/2014

Por uma destas trapaças do destino literário — naturalmente provocada pelos equívocos de nossa política editorial —, o grego Nikos Kazantzakis continua um desconhecido dos leitores brasileiros, apesar do sucesso mundial de Zorba, o grego, estrelado por Anthony Quinn, nos anos 1960, da adaptação de A última tentação de Cristo, exaustivamente exibida em cinemas brasileiros. Mesmo sua autobiografia Carta a El Greco, brilhantemente traduzida por Clarice Lispector e publicada pela Editora Artenova, do Rio de Janeiro, não tem merecido a devida atenção nem dos críticos nem dos leitores. Na década de 1970, a então poderosa Nova Fronteira publicou o romance Os irmãos inimigos — escrito em forma de diário — e todos continuaram dando as costas a este magnífico escritor, até por conta da literatura eminentemente política da época — denominada de esquerda ou de direita. A literatura no Brasil tem destas coisas — tudo é moda. E, infelizmente ou felizmente, Kazantzakis nunca foi moda.

Agora, a Grua Editora, de Carlos Eduardo Magalhães, restaura — apenas em parte — a dignidade do escritor grego no Brasil, publicando O capitão Mihális (Liberdade ou morte) — uma das obras capitais deste ilustre desconhecido entre nós, com tradução, notas e posfácio de Silvia Ricardino. No entanto, apesar de sua importância, a grande mídia nacional continuou a desconhecê-lo, apesar de algumas notas e breves resenhas em publicações nacionais. Ele merecia mais, muito mais. Em suas páginas desfilam personagens, histórias e situações decisivas e fundamentais. Talvez seminários e encontros onde se pudesse debater e analisar a importância de Kazantzakis no quadro da literatura mundial na primeira metade do atormentado século 20. É verdade que a obra é conteudística, mas é construída por um estilo forte, elaborado e cuidadoso. Belo, denso e iluminado

A obra deste grande escritor trata, na maioria dos seus livros, das guerras entre cristãos e turcos na pequenina ilha de Creta, onde se respirava um “ar trágico”, “quando os turcos ainda a dominavam” e “começavam a ser ouvidas as ensanguentadas asas da Liberdade aproximando-se” na definição do escritor. Era política também, mas não a política maniqueísta que interessava aos críticos brasileiros.

Mas, afinal, o que é o romance? “A história passa-se em Megalo Kastro, a capital de Creta, fronteira imaginária em Ocidente e Oriente, tendo como pano de fundo uma revolta que durou oito meses e foi sufocada pelo então dominador turco”, informa a tradutora Sílvia Ricardino no posfácio. Durante os sete meses em que trabalhou a obra o autor sentia-se sob forte emoção, conforme confessou depois aos amigos, porque revivia momentos dramáticos de sua gente e porque precisava ressuscitar mortos emblemáticos e queridos. Mesmo assim, dizia que nunca sentiu tanta alegria em escrever um romance. Para escrevê-lo, Kazantzakis inspirou-se na figura do pai, a quem ele respeitava e temia, além de revelar o caráter dos anciãos da antiga aldeia, cuja vida testemunhou nos primeiros anos do século 20. Os acontecimentos são quase todos verdadeiros e representam uma parte significativa da história cretense. A rua onde a história começa chama-se hoje Nikos Kazantzakis, reverenciando o seu mais notável escritor.

Ali, o escritor dá uma verdadeira aula de como se deve iniciar um romance, colocando o leitor imediatamente dentro da ação, através de um perfil físico-psicológico: “O capitão Mihális rangeu os dentes, como costumava fazer quando a raiva o dominava. Despontou dentre os seus lábios o canino direito, que brilhou em meio aos bigodes negros. Com acerto fora apelidado, em Magalo Kastro, de capitão Javali: quando ficava irritado, com seus olhos profundos e escuros de breu, o curto pescoço rígido, a pesada robustez ossuda e seu canino a despontar, assemelhava-se verdadeiramente a um javali, que viu gente e escorou-se nas patas traseiras para arremeter”. Vem em seguida, a definição exata do caráter: “Desde muito cedo, vivendo cada momento como estivesse prestes a romper uma contenda, suspeitávamos que neste mundo lutam duas grandes forças — o Cristão e o Turco, o Bem e o Mal, a Liberdade e a Tirania — e que a vida não é um brinquedo, é um combate”.

Segue-se o desenvolvimento da narrativa, com o capitão, simbolicamente, apresentando os personagens, sobretudo aqueles que terão um papel fundamental. De parágrafo em parágrafo, eles vão surgindo, através de uma saudação ou de uma conversa rápida, mas informativa. Foi uma das primeiras lições que aprendi na arte de narrar, embora nada disso possa ser repetido — e é para isto que uma oficina serve. Tudo isso vai num crescendo até que o leitor esteja inteiramente seduzido pelo romance, é claro, através do seu personagem. É um texto tão bem elaborado que se revela espontâneo, mas sabe-se que Kazantzakis precisou de três versões até chegar à montagem ideal. Escreveu durante quase dez anos, meticulosa e cuidadosamente.

Um livro, afinal, que deve ser lido com a mesma paixão com que foi escrito, porque o autor o considerava o seu romance mais importante e mais revelador.

O capitão Mihális (Liberdade ou morte)
Nikos Kazantzakis
Trad.: Silvia Ricardino
Grua
568 págs.
Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho