Um documento de inestimável valor para estudantes de criação literária é o prefácio que Truman Capote escreveu para Música para camaleões, que reúne sua fabulação esparsa, alguma inicial, expondo a disciplina a que se impôs para produzir seus romances, novelas, contos, até se transformar naquele que daria à prosa norte-americana uma contribuição riquíssima de forma a se tornar um gênio inquestionável.
Escreve Capote para desanimar aqueles que pensam que literatura é apenas exibição de palavras e frases desconjuntadas para namoradas e ajustes de empregos públicos.
Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote e esse chicote — e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação Mas isso naturalmente eu não sabia.
Daí em diante, Capote foi atravessando estágios até chegar ao estilo leve, saudável e sedutor que o consagrou no mundo inteiro. Escreveu centenas de textos, romances de aventura, romances policiais, pequenas comédias para teatro, contos que ouviu da boca de antigos escravos e veteranos da Guerra Civil. Achava que tudo aquilo era divertido.
1. Mas deixou de ser quando percebi a diferença entre o que está bem e o que está mal escrito.
2. E aí fiz uma descoberta ainda mais alarmante: a diferença entre o que está muito bem escrito e a verdadeira arte é sutil, mas bárbara. Foi a partir de então que o chicote se pôs a estalar.
Estes dois primeiros estágios ocorreram entre os oito e os dezessete anos, quando ele se trancava num quarto para trabalhar durante cinco horas diárias ininterruptas.
Mas o que fazia um garoto ainda sem experiência? Ou melhor, em busca dessa mesma experiência nessas horas de trabalho?
3. Minha aprendizagem no altar da técnica, do ofício; as diabólicas complexidades em matéria de separar parágrafos. Pontuação, colocação de diálogos, sem falar o plano de conjunto geral na grande e exigente esquematização de começo-meio-fim . Havia tanto o que aprender e nas fontes mais diversas: não só nos livros, mas na música, na pintura, e na mera e simples observação cotidiana.
Observação cotidiana, como é isso?
4. A descrição de um vizinho. Os longos relatos diários de conversas que eu ouvia. A fofocas locais. Uma espécie de reportagem. Um estilo de “ir” e “ouvir”, que mais tarde viria a me influenciar seriamente, embora naquele tempo não me desse conta, pois a minha obra “formal”, o material que retocava e datilografava com o maior carinho, era quase sempre ficção.
Quando fiz dezessete anos, já me considerava um escritor consumado. Se fosse pianista, seria a ocasião propícia para meu primeiro concerto público. Como não era o caso, resolvi que estava pronto para ser lido. Mandei histórias para as principais publicações trimestrais literárias, bem como para as revistas nacionais, que na época divulgavam a nata da chamada “ficção de qualidade”. Histórias publicadas por mim saíram no devido tempo nessas revistas.
Observe-se que neste lento e trabalhoso passo a passo, o escritor vai chegando ao estilo de A sangue frio, técnica que o colocaria entre os grandes escritores do mundo. Lento, trabalhoso e notável que, por isso mesmo, seria imitado e celebrado. Mas ainda faltava muito, demais. E ele continuou assim mesmo antes de publicar Bonequinha de luxo.
E quando, finalmente, se tornou um escritor de verdade?
5. Depois, em 1948, publiquei um romance: Other voices, other rooms. Alguns o amaram, e outros o repudiaram como se fosse uma anomalia: “Incrível como se fosse uma anomalia. Incrível que alguém tão jovem seja capaz de escrever tão bem assim”. Incrível? É o que eu vinha fazendo praticamente todos os dias. No correr dos quatorze anos. Seja lá como for, o romance serviu de desfecho satisfatório para o primeiro ciclo da minha evolução.
Este texto é uma adaptação do prefácio do livro Música para camaleões, traduzido por Milton Persson, publicado pela Nova Fronteira, 1981. Há uma edição mais recente da Companhia das Letras.