Um tiro de sal

Lembranças da boemia pernambucana, quando escritores se reuniam para discutir política e literatura, tendo uma obra de Sartre como farol
Jean-Paul Sartre, autor de “O que é a literatura?”
01/01/2022

Começamos aqui a Luta Verbal. Exagero? Talvez. Mas de repente concordo com Sartre na conclusão do devastador estudo O que é a literatura? depois de desqualificar todas as manifestações literárias, em que vê o triunfo de uma burguesia inútil, sem deixar pedra sobre pedra, e afirma: “Certamente nada disso é importante: o mundo pode muito bem passar sem a literatura”. Sem a literatura é possível, mas nunca sem a Luta Verbal contra a fome, contra a miséria, contra tudo…

Li este livro ainda na minha juventude — não sei em que tradução, em que biblioteca pública, festa ou barzinho, aqui me perco na lembrança do tempo inteiramente desconectado, duvido se li mesmo, e quando me preparei para escrever uma obra forte, original, inquietante… Ouvi muito não de professores para este caminho de rigor literário… mas me perdi na curva e mudei muitos passos.

Lembro-me de que naquele tempo, estudantes e escritores iniciantes ou menos do que isso costumavam se encontrar no Teatro Popular do Nordeste — templo da esquerda pernambucana, um enorme casarão tradicional, com direito a restaurante e boteco, na avenida Conde da Boa Vista, centro do Recife, onde se discutia política, cultura e livros, conversas regadas a muita, muita cerveja e sexo.

Ali circulavam políticos, escritores, intelectuais, artistas, cantores, muitas vezes topei com o gordinho Gilberto Gil, violão embaixo do braço. Meu grupo discutia o destino do mundo, a sorte da literatura, o fim da ditadura, a felicidade sem autoajuda. De repente o grupo fugia e se encontrava no bar Ouro Branco, bem próximo, onde a orgia encantava a noite do Recife. Numa mesa do canto do bar, conversávamos, discutíamos, debatíamos. Em companhia de Gilka, perdia o controle sexual, futuca aqui, futuca ali, beliscões por baixo da mesa e até ousadias de masturbação, vou ali no banheiro volto já… para divertimento dos garçons, surpreendidos com a bandalha. Henry Miller sobre a mesa acenando com Sexus, Nexus, Plexus. Para desgosto de Ariano Suassuna, preocupado com a cultura popular, e de Hermilo Borba Filho, ideólogo do romance nordestino com base em Sartre e Miller, desmontando o conservadorismo da região política e sexo. Aliás, os donos do TPN.

O meu amigo Sérgio Moacir de Albuquerque levava sempre as páginas mimeografadas de um romance — Irene — que estava escrevendo há muito tempo, publicado tempos depois com alarido pela Civilização Brasileira, com direito a anúncios em jornais, chamando-o de revolução literária. Incluía também, naquilo que nem era um jornaleco, capítulos de livros famosos, inalcançáveis para nosso ralo dinheiro e, parece, dentre estes papéis amarrotados e até rasgados, um trecho ou outro de O que é a literatura?

Sérgio era filho de um professor de francês, mestre nas artes de literatura avançada. Iniciamos uma séria discussão sobre aquilo, estavam ali ainda os poetas Tarcísio Meira César e Cyl Gallindo, e o sociólogo Silvio Soares, além de Gilka, minha namorada e estudante de Direito, com incrível sede de sexo. Cyl e eu tentávamos salvar a literatura da morte. Não havia remédio. Tarcísio e Sérgio Moacir eram fulminantes. Depois de uma dúzia de cervejas, cachaça, baurus, coxinhas e muitos gritos, resolvemos bater em retirada, já embriagados.

A madrugada começava aos gritos de “Abaixo a Burguesia!” ou “Abaixo a Ditadura!”. Estávamos em 1968. Saí de braços dados com Gilka, em busca de um lugar onde pudéssemos fazer sexo. Coisa estranha naquela época, porque as mulheres não costumavam perder a virgindade antes do casamento. Nunca pude esquecer este debate porque levei um tiro de sal na coxa direita e a guerra acabou. Ainda hoje não sei se era guerra sexual ou a guerra literária.

Como não havia motel, ou se havia a gente não descobrira ainda, Gilka, incontrolada, me encostou no tapume de um prédio em construção e iniciou um monumental esfrega-esfrega, a mão deslizando calça adentro. Daí a pouco ela arriou minha cueca. O vigilante não gostou e acertou minha coxa com um tiro de sal. Atingido e medroso comecei a gritar. Tentava correr, mas a cueca ainda suspensa na bunda dificultava os movimentos… Estou morrendo, Gilka, estou morrendo. Ela dizia: “Fique calmo, fique calmo, a gente chega já, já, na esquina… Você não sabe o que é sofrer…” Gilka… Ô mulher sem coração… Ô mulher sem coração… Paramos na esquina e, à luz do poste, verificamos que o sal nem rasgara a pele… Talvez por isso Sartre foi esquecido. Lições de guerra com um único tiro de sal. Eu sou a primeira vítima da revolução depois deste tiroteio… Tiroteio? Que tiroteio? Deixe de besteira… Nem tiroteio nem briga de amor, que guerrilheiro de merda você seria, hein? Não aguenta nem um tiro de sal… É porque não foi com você… Mas me diga uma coisa: como é mesmo a frase de Sartre?… “O mundo pode muito bem passar sem a literatura.” Repita, por favor: “O mundo pode muito bem passar sem a literatura”. “Estou duplamente desmoralizado: por um tiro de sal e por uma frase… que merda!…”

Por isso, sugerimos que esta literatura morra, mas surge um valor forte e decisivo, A LUTA VERBAL contra a fome, a miséria e as agressões sociais, o que não é novo, é claro, porque se realiza desde que grandes autores nacionais, Jorge Amado e Graciliano Ramos, sobretudo, decidiram denunciar a podridão social combatendo o luxo de poentes luxuriantes e destruindo toda forma da inútil beleza aristotélica ou, como se diz comumente nas esquinas, a beleza grega. Agora “cessa tudo que a antiga musa canta, e um valor mais alto se alevanta”, lembra Camões.

Afinal, por que escrevo tudo isso, sufocado por todas estas lembranças? Carregando nos ombros o sexo com Gilka, os debates com o grupo, sob o peso de Sartre e Henry Miller? A revolução erótico-político que se pretendia fazer? Ou que se pretende ainda, quem sabe? A luta verbal — que chega às livrarias, provavelmente, depois do carnaval — combate toda forma de injustiça com as armas da escrita, da palavra firme e decidida, sem deixar espaço para romantismos e palavras açucaradas.

Não temos mais susto, está tudo esclarecido. Num mundo com fome, a miséria à mesa, proclamamos ainda a grandeza da obra contemporânea de Marcelino Freire, capaz de restituir a única forma social que realmente vale a pena… Vamos que vamos, minha gente, temos pressa…

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho