Costuma-se dizer, com frequência, que Machado de Assis é um bruxo e que ele usa magistralmente a digressão. Mas como ele usa esta digressão? E o que faz para seduzir o leitor?
O narrador de Dom Casmurro, por exemplo, sugere que o romance foi escrito em transe hipnótico. Ou seja, no momento em que o narrador se dispõe a alguma coisa para vencer a monotonia, olha fixamente os bustos de quatro personagens históricos e é levado ao transe:
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, Filosofia e Política acudiram-me as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse a pena e contasse a alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras…
Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo.
Na última linha narrativa do livro, o narrador acorda e lembra, finalmente… “Vamos à História dos subúrbios…”. Parece dizer, de repente: “Bem… agora vamos, finalmente, à História dos subúrbios. Algo surpreendente e belo. Arte de Gênio, trabalho de artesão…”.
Entra em transe agora para escrever Dom Casmurro inspirado pelas sombras provadas sobretudo por César, que o incita a “fazer os comentários”, como aconteceu com Goethe, durante a escrita do Fausto. Esta é a maneira como Machado usa a digressão.
Conclui-se, então, que Dom Casmurro é um romance escrito em transe. Pode parecer simples demais, mas as palavras engenhosas são do próprio narrador, conforme a vontade expressa do autor. Claramente.
Sem esquecer, ainda, que Dom Casmurro troca de nome no terceiro capítulo e o leitor não observa. Tudo de acordo com o transe…. Imediatamente deixa de ser Dom Casmurro e assume Bentinho, num jogo habilíssimo. Para mostrar o jogo ainda mais forte e belo… quem anuncia o novo nome não é o narrador, mas o personagem José Dias.
Este é mesmo um toque de bruxo. Nos dois primeiros capítulos, o narrador procurar demonstrar, exaustivamente, que o seu nome é Dom Casmurro — mesmo sendo um apelido — e no terceiro capítulo é chamado de Bentinho, enquanto Dom Casmurro desaparece completamente.
— D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e agora já pode haver uma dificuldade.