Um Gabriel demente mas genial

As páginas finais de "Em agosto nos vemos" ultrapassam a genialidade ao atingir uma espécie de criação absoluta e sobre-humana
Gabriel García Márquez, autor de “Cem anos de solidão”
01/07/2024

Gabriel García Márquez era demente. Tudo bem, tudo bem, não vou discutir com os filhos dele — Rodrigo e Gonçalo —, mas um demente genial, sem dúvida. Talvez mais do que genial, se houver um termo específico para este caso, porque sua obra é uma magnífica contribuição para a humanidade e não somente para a literatura.

As páginas finais da novela póstuma Em agosto nos vemos ultrapassam a genialidade ao atingir uma espécie de criação absoluta e sobre-humana, carregando o leitor para além do maravilhoso, para usar uma expressão ainda inadequada.

O zelador e o coveiro desenterraram o ataúde e o abriram sem compaixão com o talento de um mágico. Ana Magdalena viu então a si mesma no caixão aberto como um espelho de corpo inteiro com sorriso gelado e os braços em cruz sobre o peito.

Observe-se que neste instante que o autor, através do narrador, recorre à técnica do olhar do personagem, seguida de uma imagem do espelho que a remete ao retorno do tempo do casamento sem o romantismo da saudade, mas consolidando sua verdadeira face ainda que morta. Num instante duas imagens da mesma mulher: uma morta e outra viva, sem recorrer a frases eloquentes ou espetaculares. Mesmo que harmônicas e equilibradas, gerando uma nova e definitiva imagem.

É assim que, em seguida, evita adjetivos, recorrendo à técnica de imagens sobre imagens até o instante mais dramático da novela com uma cena recheada de diálogo.

Ela se viu idêntica e com a mesma imagem daquele dia, com o véu e a grinalda com que havia se casado, a tiara de esmeraldas vermelhas e as aliança, como sua mãe tinha determinado em seu último suspiro. Não só a viu como tinha sido em vida, com a mesma tristeza inconsolável mas também se sentiu vista pela mãe, lá da morte, amada e chorada por ela, até que o corpo se desfez em seu próprio pó final e só restou ossada carcomida, de onde os coveiros tiraram-lhe a poeira com uma vassoura e guardaram-na sem misericórdia num saco de ossos […]

Escrita ambígua — outra técnica sutil — enquanto Ana Margareth narra, a tarefa do narrador sofre uma ruptura, porque a mãe assume a narração lá da morte.

Finalmente:

Às seis, quando o marido a viu entrar em casa arrastando sem misterioso saco de ossos, não conseguiu segurar a surpresa:

— É o que resta da minha mãe — disse ela e se antecipou ao espanto dele.

É importante destacar que a mãe neste final assume um papel importante.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho