São tantas inquietações, tantas dores, tantos gritos e tantos gemidos, que o poeta não tem mais dúvida, está escrevendo o último poema e não lhe restará outro recurso senão vomitar palavras e ideias. Impossível evitar. Assim se manifesta Ferreira Gullar sobre o Poema sujo, o grande poema brasileiro do crepúsculo do século vinte, que fecha um período extremamente criador, pessoal e geral do país, coletivamente, terreno de todas as vanguardas e experimentos, campo aberto de, pelo menos, duas ditaduras sangrentas e cruéis — mesmo considerando-se que toda ditadura é de natureza sangrenta e cruel — que lhe provocaram grande sofrimento do exílio e de si mesmo. Naquele instante de epifania e de dor, o escritor maranhense sentiu ter encontrado o umbigo do poema (“porque como as pessoas e os bichos, o poema também começa pelo umbigo”) e “quase sem tomar fôlego, escrevi cinco laudas”.
O belo depoimento de Gullar chega ao público em Rabo de foguete: os anos de exílio, publicado pela José Olympio, do grupo Record, que reúne mais de dez selos editoriais, congregando o histórico e o contemporâneo da literatura brasileira, entre eles José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, além de Gilberto Freyre, fundador e continuador do Movimento Regionalista, sem esquecer Ariano Suassuna, também fundador e continuador do Movimento Armorial, portanto, dois dos mais importantes movimentos literários e culturais do Nordeste e do Brasil, ao lado do Modernismo e do Concretismo. Somente este grupo de escritores formaria uma magnífica biblioteca de gênios literários nacionais.
O tormento físico e criador de Ferreira Gullar começa no exato momento em que suspende a brincadeira com o gato no seu apartamento do Rio de Janeiro para atender ao telefonema do amigo Leandro, com quem iria se encontrar momentos depois, para conhecer assunto grave e inevitável: “Waldo entregou todo mundo, você, eu, Dias, Rafael”. A revelação daquele instante iria resultar num doloroso exílio de várias viagens, um verdadeiro Ulisses, deslocando-se de um país para outro, escrevendo, escrevendo, escrevendo, enfrentando a grave doença mental do filho, até perceber, em meio a todos os tormentos, que escrevia este poema final — o que naturalmente é muito, muito grave para um escritor que enfrentara todos os desafios da escrita —, sem que o texto literário lhe representasse jamais o cretino sorriso da literatura, conforme a expressão infeliz de Afrânio Peixoto: “A literatura é o sorriso da sociedade”.
Aliás, vejo como norma absoluta, o ensinamento do mestre Ariano Suassuna: “A missão da literatura é zelar pela humanidade”. O que o poeta Gullar faz muito bem. Zelar pela humanidade não é o tipo de literatura carola, purista, de sacristia, de fundo de igreja; de forma alguma; zelar pela humanidade quer dizer mais, muito mais mesmo; quer dizer, lutar pela dignidade humana, pelo respeito humano, aí incluindo a obra de Dostoievski, de Proust, e até de Henry Miller, no qual se constata que a dignidade humana não é afastar e negar o sexo ou a leviandade do homem, mas o caminho do respeito, do entendimento, da solidariedade, do amor; haveria, portanto, um amor maior do que a defesa dos interesses da cidadania. Respeito aos gêneros e à desigualdade. Mesmo quando não se escreve sobre gênero e desigualdade. Racismo e minorias. Tudo isso é fundamental.
À literatura, sobretudo, o respeito e a dignidade.
E por que poema/final?
Diz ele: “Achei que era chegada a hora de tentar expressar num poema o que eu ainda necessitava expressar, antes que fosse tarde demais — o poema/final” — revela num instante doloroso e iluminado, a um só tempo. Reconhecia-se um poeta terminal, justo no instante em que atingia o ponto agônico de sua obra.
Aliás, o instante em que o escritor se transforma, definitivamente, no porta-voz do povo, da nação humilhada pela força. Mesmo assim recorre a uma expressão no mínimo curiosa para definir o estado quase mediúnico em que se encontrava: “Senti que tinha encontrado o umbigo do poema — porque como as pessoas e outros bichos, o poema começa pelo umbigo — e, quase sem tomar fôlego, escrevi cinco laudas”.
Enquanto lutava com palavras, injúrias e tormentos, atingido pelos transtornos do exílio, o poeta recebe uma carta com notícias do seu filho Paulo. Brutalmente atingido por problemas mentais, o rapaz fora encontrado debaixo de chuva, sentado no chão e muito sujo. Decidiu não parar de escrever, apesar de tudo, e escrevia e escrevia — “Nada me fez interromper o poema.” — nesse estado doloroso, trabalhou sete meses, parando mesmo apenas para comer e para dormir.
De repente, descubro o que significa o umbigo. No meu caso é um estado físico. Durante um tempo da minha vida toquei sax-tenor na banda Os Tártaros, no Recife da Jovem Guarda, e para alcançar o som rasgado do instrumento, onde fazia o sopro nascer no umbigo para forçar a passagem pela traqueia até estrangular este bendito som na garganta. Dava a impressão de um grito e de um gemido, o som de um animal ferido. Gritos e aplausos na plateia. O músico antecipava o escritor e ambos viveriam juntos. Para sempre.