Atenção: não se pode transformar o elemento artístico em trabalho burocrático. Cena aqui, cenário acolá, diálogo mais adiante. Todos sabemos disso. Criação é disciplina, tudo bem. Mas é possível separar, cuidadosamente, as partes de um romance, por exemplo, para conhecê-lo na intimidade. O domínio da técnica é fundamental. De forma que além do estudo das cenas — movimentos — e dos cenários — sem movimento —, em separado, precisamos verificar a forma como vão se relacionando sem que o leitor perceba. Além disso, os cenários podem esconder ações que não parecem importantes e vão, pouco a pouco, enredando o leitor desprevenido.
O cenário, já dissemos, esconde ou anula a ação — vejam o exemplo de Educação sentimental, de Flaubert, ou Adeus às armas, de Hemingway — e a cena permite maior agilidade à narrativa: os romances de sucesso geralmente trabalham com cena sobre cena. Aqui, vamos estudar cenários sobre cena, que permitem equilíbrio no movimento interno do texto. Observem que não estamos falando, de propósito, em história ou enredo, mas de narrativa e texto, técnicas que, de forma alguma, são iguais. Sem esquecer nunca que história é uma técnica — não envolve trama, por exemplo —, enquanto enredo pede uma história com suspenses e movimentos.
Há, pelo menos, duas maneiras de conduzir o texto nessas situações: a) Cenário sobre cena; e b) Cena sobre cenário. É aqui que esse tal trabalho burocrático começa a desaparecer. Desaparecem o cenário puro e a cena pura. Começam a confundir o leitor. A questão é que o cenário sobre cena concede menor velocidade ao texto, e a cena sobre cenário faz a leitura correr mais rápida. Bastam observação e estudo. Sem esquecer, ainda, um pouco mais adiante: a) Cenário sobre cenário; e b) Cena sobre cena.
Usaremos textos de Graciliano Ramos para o estudo de cenários sobre cenas. É algo valioso e muito importante, porque estabelece um jogo de sedução do narrador sobre o leitor, fazendo-o apreender o espírito do livro, segundo suas próprias estratégias. É preciso dominar o assunto, sem que signifique camisa-de-força. O artista é livre, sempre. No entanto, é necessário conhecer a intimidade da obra literária. Repito. Sempre tive escrúpulos para escrever sobre esses assuntos. No entanto, pouco a pouco, fui me convencendo de que essa espécie de didática — tantas vezes considerada inútil — concede uma visão específica sobre a composição da obra de arte literária.
O que é um cenário sobre cena?
Basta observar o exemplo que temos aqui em Vidas secas. Didaticamente: a) O cenário abre o parágrafo, que terá b) continuidade com uma cena, e c) fecha com um cenário. Esses movimentos rápidos, são capazes de seduzir o leitor, com grande habilidade. O narrador, contudo, pode usá-la com várias finalidades. Entre outras coisas, para esconder do leitor as verdadeiras intenções narrativas. Sempre assim:
O narrador deve usar as técnicas que lhe pareçam mais apropriadas para aquilo que quer alcançar. O que pretende? Qual é o jogo? Como atrair o leitor para as conveniências do texto? Qual a estratégia? Quais as estratégias?
No exemplo seguinte, observaremos que o narrador do romance quer, de imediato, colocar o leitor dentro da história, cujo cenário é o personagem principal, porque através dele transcorre o drama dos retirantes, junto com o cenário — que não se afastam um do outro. Portanto, nada mais correto do que criar um cenário sobre cena. Ou seja, os movimentos dos personagens — ação — são motivados pela inclemência da seca — cenário. É aí que está a verdade do texto. É claro que pode haver outra estratégia, como não. Contudo, o que importa aqui é análise pura e simples do que temos diante dos olhos.
Para estabelecer a função da cena, que é de atrair o leitor imediatamente, o narrador procura os efeitos mais eficazes, impondo um cenário inquietante.
Então vamos passar para o estudo desta técnica.
Cenário sobre cena:
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe através dos galhos pelados da caatinga rala.
Por que cenário sobre cena? Porque o cenário encobre a ação dos personagens, embora examinado por esses mesmos personagens. Em síntese: o cenário prepara a apresentação dos personagens, ainda que seja numa única linha.
Cenário: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes”.
Cena: “Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra”.
Cenário: “A folhagem dos juazeiros apareceu longe através dos galhos pelados da caatinga”.
Então agora se pode observar, com a maior clareza, os movimentos internos que compõem o parágrafo. Através de leves referências ao cenário, que abre e fecha o texto, o narrador prepara o leitor para o drama dos retirantes de Vidas secas. Aqui há uma técnica, estamos examinando, que precisa ser estudada com atenção: um perfeito cenário sobre cena. Neste caso específico, o cenário prepara o leitor para o que vem a seguir. A boa literatura é feita nesses mínimos detalhes. Algo quase imperceptível ao leitor, mas profundamente bem elaborado. Aí se mostra o gênio do autor. Na obra de arte, a técnica sempre é sutil. Rápida, leve. A principal função é seduzir o leitor. Repito sempre. Exaustivamente.
É sempre interessante destacar que o cenário sobre cena dá um privilégio à ambientação onde se desenrola a ação. Portanto, o cenário prepara a ação/cena. E, logo depois da ação/cena, volta ao cenário. O que mostra, com clareza, que cenários e personagens ocupam um só espaço, o mesmo espaço, estão unidos. Porque pode acontecer também de ambos ocuparem espaços diferentes, criando uma contradição. Situações opostas. Sem dúvida alguma.
Observando bem, a cena, embora indireta, subjetiva, se refere a um acontecimento geral — a viagem dos retirantes pela terra árida — e dá continuidade ao cenário de abertura. Neste caso o cenário é superior à ação. Por isso o cenário sobre cena. E depois cenário. Destaque-se bem este movimento interno. Mas é preciso fechar o parágrafo com o cenário. Se por acaso não se fecha, a ação corre em paralelo, e não dentro do cenário. Não vão ter continuidade sempre. Infinito. Está bem?
Agora copie, literalmente copie, o parágrafo de Graciliano Ramos.
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Vamos criar um cenário que substitua o do livro. Só o cenário, a cena é a mesma. Lembrando: abre-se o texto com um cenário, e fecha-se com outro cenário. A cena fica no meio.
____________________________________________________________________. (Copie a cena como está no livro) ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Invente seu exercício, lembrando-se: primeiro o cenário, depois a cena, e fecha com um cenário.
Não tenha vergonha ou escrúpulo de fazer aquilo que os músicos e os artistas plásticos fazem continuamente. Todos os artistas se exercitam sempre. Todos. Os escritores imaginam que podem tudo sem estudar. Mesmo os cineastas gastam fortunas para repetir cena por cena, diálogo por diálogo, cenário por cenário. Flaubert não só escrevia e reescrevia como pedia ajuda a amigos. Lia, relia. Não acredite em literatura espontânea. Jack Kerouac chegou a escrever uma versão de On the road em francês, e reescreveu o romance várias vezes. Aquela mentira de que ele escreveu o livro em quarenta dias é mentira mesmo.
Repita o exercício quantas vezes forem necessárias. Na próxima coluna, trataremos de cena sobre cenário.