Durante muitos anos, e por quase toda vida, Gabriel García Márquez — não só Prêmio Nobel, o prêmio talvez seja apenas um incidente, mas sobretudo um gênio criador — viveu com a suspeita de um diagnóstico nunca suficientemente explicado: o de portador de demência, que os filhos Rodrigo e Gonçalo tentaram justificar em diversos documentos, mesmo quando tentavam ser discretos.
No melancólico Gabo & Mercedes — uma despedida, fazem várias revelações sobre a doença, mas não dedicam um capítulo, com documentos médicos, que justifiquem o diagnóstico.
“Ele fala com uma propriedade que nos faz esquecer, a alegria do momento, que está há anos afundado na demência”, escreve Rodrigo García, confirmando que não é algo passageiro, mas uma incrível e arrasadora realidade.
Uma pergunta imediatamente se impõe?
Como um autor tomado por algo assim escreve obras tão decisivas para a humanidade? De onde vem esta força? E este equilíbrio alia harmonia de livros magistrais?
Resposta mesmo não há. Sequer especulação. Consulto médicos e eles me asseguram que esta doença chega, se instala e não sai nunca mais. Não há progressão ou regressão. De propósito, tomo de empréstimo o seguinte texto do livro de Rodrigo:
Uma tarde, um médico jovem — chefe dos internos do hospital, filho de pai colombiano — passa para cumprimentar meu pai. Pergunta como ele se sente, e a resposta do meu pai é “Fodido”, e que o homem com quem falamos quase não está mais presente, nem entende nada e simplesmente ele.
Por tudo isso, entre perplexo e incrédulo, é que me pergunto: como um homem assim pôde escrever livros tão organizados e harmoniosos como este Em agosto nos vemos, com tradução sempre magnífica de Eric Nepomuceno?
Sabe-se, entre outras coisas, que a novela é o encontro de cinco versões ou contos que García Márquez escreveu em épocas diferentes, harmonizados pela personagem Ana Magdalena Bach, fio condutor de todo enredo, por si mesmo um enredo cheio de hiatos sem perder a horizontalidade, isto é, sem perder o rumo, com verticalidade exata, onde aparecem os vínculos entre as narrativas — sendo esta a versão 5 —, uma organização que rejeita qualquer ideia de demência ou de desorganização mental.
A novela começa com um pretérito perfeito — Voltou — que sugere um passado vivo, pulsante, conhecido, de quem retorna a um ponto conhecido, com função de presente do indicativo e um futuro narrativo. Não é apenas uma volta qualquer, mas uma volta necessária, que sugere uma narrativa que vem passando e que tem continuidade, sobretudo no pretérito imperfeito — usava — que estabelece uma progressão temporal permanente, conforme nos ensina Flaubert, tão elogiado por Proust.
Em seguida, o narrador apresenta um perfil físico-psicológico que não só mostra a personagem como sugere as primeiras ações, numa técnica admirável:
Usava calça jeans, camisa xadrez no estilo escocês, sapatos simples de salto baixo sem meias, carregava uma sombrinha, sua bolsa de mão e, como única bagagem, a maleta de praia.
Uma mulher de extrema simplicidade, revelada na roupa detalhada, que define alguém metódica, lenta, por isso mesmo com sapato baixo, em meias, a sombrinha e bolsa destacam esta enigmática mulher cercada de cuidado e zelo, pronta, talvez, para um período de férias. Isso parece definitivo na frase seguinte: “Na fila de táxis do cais foi direto para um modelo velho, carcomido pelo salitre”.
Ocorre que, embora a situação pareça toda conduzida pelas mãos hábeis de autor escondido no narrador, a próxima questão revela um novo dado que estabelece novo conflito:
O chofer a recebeu com um cumprimento amigável e a conduziu aos solavancos pelo povoado miserável, com casas de pau a pique, telhados de folhas de palmeira amarga e ruas de areia ardente diante de um mar em chamas.
Um povoado decadente do Caribe? Mesmo assim servindo para turismo?
Um show de técnicas; um show de técnicas… Enfim, uma personagem simples apressada ou lenta? Como se revela?
Finalmente, parou no hotel mais velho e decadente.
O recepcionista esperava por ela com a ficha de hóspede pronta e as chaves do único quarto do segundo andar que dava para a lagoa.
Portanto, a personagem não é tão desconhecida assim, o recepcionista esperava por ela. Uma inteligência lúcida e desafiadora. Aqui, fica internamente claro por que a personagem “Voltou” e o seu desenvolvimento na narrativa. Na sequência:
Subiu a escada com quatro passadas largas e entrou no quarto pobre com cheiro de inseticida recém-aplicado e ocupado quase por inteiro pela enorme cama de casal.
Há em tudo um paralelismo objetivo entre os cenários e os perfis da mulher, a provocar no leitor uma sensação de equilíbrio e harmonia de forma a levar o leitor a questionar esta sensação de que o humano e o material são elementos de um só universo que reclama mãos de arquiteto para evitar a confrontação.
Para uma mente demente, algo que só se entende no mundo da lúcida criação literária.