Sexo e passeatas na origem do sonho

Lembranças de um tempo em que o jovem romancista se atrapalhava em expressões “difíceis” e vivia uma louca paixão com a inesquecível Gilka
Henry Miller, autor da “trilogia A crucificação encarnada”
01/04/2022

No começo foi assim: leituras, leituras, leituras, exercícios, exercícios, exercícios, leituras, exercícios, leituras, exercícios e uma experiência falhada: Gigante mundo em quatro paredes — este é o nome do rascunho da minha primeira tentativa de romance, lá pelos 19 anos, quando decidi iniciar esta maravilhosa aventura literária, entre passeatas e sexo, no tempo em que os jovens ocupavam as ruas exigindo um governo democrático para o Brasil.

O norte-americano Henry Miller provou, na prática, que sem sexo não há vida. Sexus, Nexus e Plexus povoavam não só a biblioteca, mas o dia a dia numa ansiedade de arrepiar. A proposta era trazer para o papel provinciano o exemplo de Miller. Só parava de escrever — ou de juntar palavras — para participar de passeatas estudantis na avenida Boa Vista, ali na porta do apartamento onde morava com o irmão — Felipe — e a irmã Margarida.

Foi quando descobri que era possível escrever e viver — tudo assim ao mesmo tempo. As passeatas, com inflamáveis discursos políticos, terminavam geralmente em pancadaria entre policiais e estudantes empenhados na queda da ditadura com palavras de ordem, hinos e muitos gritos.

Dali não voltava para casa, saía com a namorada Gilka em busca de um apartamento discreto para sexo, muito sexo, sem ser jamais interrompido. Uma experiência de gelar a boca do estômago. Nunca vira antes uma mulher nua. E agora ela estava ali, em pé ou na cama, inteiramente nua, ainda uma menina-estudante com os seios que se sacudiam e clamavam por beijos.

Escrevi esta primeira experiência no romance que começava assim: “No lusco-fusco da tarde no apartamento”. Mostrei o livro ao editor Barbosa, da editora Leitura, do Rio de Janeiro. Ele tossiu e resmungou depois deste começo desastroso.

Depois mostrei a Gilka e ela gargalhou.

“Como mulher parece que vou bem, mas a musa não aprovou.”

Bebia gim e jogava a cabeça para trás enquanto ria. Expunha ainda os seios que eu admirava e amava tanto.

Tempos depois entendi o grotesco da frase e da reação dos dois. Tudo isso porque no primeiro rascunho escrevera: “À luz da tarde”. Mas achei que era simples demais. Acreditava, naquele momento, que um escritor não escreve tão simples assim: um escritor precisa ser difícil, acreditava. Foi por isso que recorri ao lusco-fusco. Para mim era o máximo, digno de um romancista experimentado e maravilhoso.

Talvez estivesse sendo influenciado pelos poetas parnasianos que escreviam “o céu plúmbeo e a tarde cinzenta, triste e agônica”. Aliás, a minha geração recifense gostava muito de agônica… Não foram poucas as vezes que li esta palavra em poemas de iniciantes sem orientação nem leitura. Na minha geração de escritores pernambucanos, esta palavra era muito, muito usada…

Nem parecia que estava lendo Henry Miller, sem chapéu e sem cueca. E era necessário aprender sobretudo com Manuel Bandeira, que descrevera em uma só palavra, a emoção de ver uma mulher nua pela primeira vez: alumbramento. Definitiva lição.

Preciso destacar, ainda, que Henry Miller não escrevia assim. Era simples, muito simples. E nada emocional. E substitua, com vantagem, aquelas leituras antipáticas da escolas, onde li o péssimo Cazuza, de Viriato Correia. Não acredito que exista coisa pior. Mas estávamos proibidos de ler Jorge Amado, desde a escola, com seus romances simples e objetivos.

Agora imagina abrir um livro meu e encontrar na primeira frase: “No lusco-fusco da tarde”. Palavras difíceis resultam em frases ruins. Mesmo quando escritas por escritores já experimentado — ainda assim, lusco-fusco parecia-me musical, era como abrir um frase com um acorde.

Uma lição definitiva: escrever é simples. É melhor recorrer a um lugar-comum do que escolher uma frase ou uma palavra de mau gosto. Na maioria das vezes a invenção passa pelo já inventado, pelas coisas simples e óbvias.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho