São tantos os estudos. Tantas as reflexões, tantas as análises, tantos os exames, que Dom Casmurro, o intrigante romance de Machado de Assis, tornou-se desde a publicação a ficção mais sofisticada da América Latina, antecipando-se ao que viria só mais tarde, ou só muito mais tarde, acontecer na Europa e nos Estados Unidos. Não só uma digressão, uma intrigante digressão, mas uma montagem romanesca, cheia de curvas, atalhos, caminhos e atordoamentos, que o analista se entrega a um labirinto que empolga e inquieta. Uma das pessoas mais insistentes e repetidas vezes sem conta é aquela que pouco a pouco vai se tornando medíocre: afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho? A partir desta pergunta que se aproxima em muito das conversas de academias ou de salão de beleza, são feitas muitas conjecturas a respeito do romance que, por isso mesmo, foi se tornando tão popular.
De tão repetida e de tão exaustivamente repetida, os estudiosos brasileiros queimaram os olhos nas leituras e releituras, cada um mais convincente. Houve quase um acordo tácito e definitivo: não houve traição porque esta é uma conclusão do narrador dom Casmurro, que não era dom e casmurro apenas na velhice; durante a vida foi Bentinho; às vezes Bento Santiago e, muito remotamente, José Bento Santiago, dependendo das circunstâncias e das necessidades narrativas. Sem dúvida, uma sofisticação muito, muito bem elaborada.
Eu mesmo procurei culpar o narrador dom Casmurro pela resposta incômoda. Fernando Sabino, em estudo arguto mais de ficcionista do que de ensaísta, procurou tirar dom Casmurro da narrativa, de modo a isolá-lo tão profundamente que a questão ficaria mais simples, menos intrigante e mais esclarecedora, embora jogando a culpa nas costas de Capitu. Assim é no livro Amor de Capitu: O romance de Machado de Assis sem o narrador dom Casmurro. Fernando Sabino chega a dedicar todo um capítulo ao cronista dom Casmurro, que o coloca na condição de cronista do Rio de Janeiro, que justificaria o narrador cheio de digressões a respeito da história, da paisagem e da religião cariocas. Um ensaio muito inteligente, muito arguto e bem escrito, mas insuficiente para solucionar o conflito. São mudanças narrativas que possibilitam a sedução do leitor.
Domício Proença Filho tentou resolver a questão num livro muito inteligente e único: Capitu: memórias póstumas. E aí, como se percebe, é claro, a voz soberana é da mulher que tem, agora, todo um livro para se defender, apesar das limitações do autor, um homem sem a picardia feminina. Por isso é insuficiente. E a tentativa esbarra aí. Além do mais, esta Capitu conhece a própria vida, mas não a vida da personagem. Duas coisas bem diferentes.
Diante de tudo isso, convenço-me de que só o caráter intrigante e canalha de José Dias, o falso médico, é o verdadeiro narrador de Dom Casmurro. No capítulo 3, quando Bentinho entra na sala da casa, ouvimos a voz deste personagem cruel fazendo acusações a Capitu, que é ainda uma adolescente de 15 anos, mesmo uma menina é chamada de desmiolada sedutora de Bentinho, visto aí como uma espécie de santo. Pois é este santinho que está sendo seduzido por Capitu — aliás, o nome Capitu é misterioso, sensível, mesmo sabendo que é o nome verdadeiro é Capitulina, que pode sugerir uma espécie de capitulação. Os dois nomes juntos formam uma espécie de corpo mágico da narrativa. Um toque sensível. Um modo de vida.
E José Dias?
Mas quem era mesmo José Dias? Machado dedica-lhe um capítulo inteiro na apresentação. É assim:
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em acionados. Era uma vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta quanto naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele.
Um tipo maneiroso, que se ajusta à situação. Vagaroso e rígido. Ajustando-se aos movimentos, às situações. Nos lances graves, gravíssimos, um velho canalha. Canalhíssimo. No momento em que entra na sala, Betinho ouve a intriga deste canalha sugerindo um namoro exagerado entre Capitu e Betinho, o que detona a intriga do romance.
Era nosso agregado desde muitos anos. Meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaboraí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um manual e uma botica. Houve então um andaço de febre. José Dias curou o feitor e uma escrava. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com um pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé de pobre.
— Quem lhe impede que vá a outras artes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.
— Voltarei daqui a três meses.
Voltou depois de duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipendio, salvo o que quisesse dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a família, ele vai também, e teve o seu quarto de fundos da chácara. Um Dias, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa escravatura. Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a nova escola e não fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar tais doentes.
Mas o senhor curou das outras vezes.
Creio que sim, o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios indicados no livro. Eles, sim, abaixo de Deus. Eu era um charlatão… não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos… Menti para servir à verdade. Mas é tempo de restabelecer tudo.
A frase é emblemática: é tempo de restabelecer tudo.
Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo; tinha dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa de família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me, não me lembro. Minha mãe ficou-lhe muito grato. Não consentiu que ele deixasse o quarto da chácara; no sétimo dia, depois da missa, ele foi despedir-se dela.
— Fique, José Dias.
— Obedeço, minha senhora.
Nestas últimas palavras, com certeza, observa-se o cinismo do personagem responsável pela intriga mais sofisticada da literatura brasileira.