O romance contemporâneo tem sempre uma dúvida: como começar? Em geral, aconselha-se sempre uma abertura com cena rápida para envolver o leitor. E daí em diante cena sobre cena, cena sobre cena, cena sobre cena, quase sem repouso. Esse é chamado o bom começo de uma história, de forma a deixá-lo quase atordoado, sem outra opção senão parar tudo, sentar-se e ficar ali até o fim do dia. Ou da noite quem sabe.
Isso quer dizer: ação mais ação mais ação. Até porque não se deve esquecer a fórmula razoável da cena: personagem mais ação mais seqüência, sugerida, ainda que, remotamente, por Aristóteles no livro famoso e definitivo: A poética. E quando a cena vem marcada de algum mistério, aí é o máximo. É o que dizem, não é? Leitor que se preze não quer saber de cenários, digressões, comentários, mesmo quando são seduzidos por eles, e nem sabem.
Exemplo marcante de cena sobre cena está no começo do conto As irmãs, de Joyce, por exemplo, com todo o envolvimento misterioso e rápido. Prestem a atenção:
Desta vez não havia esperança para ele: fora o terceiro ataque. Noite após noite, ao passar diante da casa (era tempo de férias), eu observava o retângulo iluminado da janela e, todas as noites, encontrava-o com a mesma luz pálida e uniforme. Se estivesse morto, pensava, eu veria o reflexo das velas nas cortinas escuras, pois sabia que duas velas devem ser colocadas à cabeceira de um defunto. Dissera-me várias vezes “não ficarei muito tempo neste mundo” e eu julgara vãs suas palavras. Sabia agora que eram verdadeiras.
É claro que estamos falando de Joyce, o genial, mas a rapidez das cenas — somadas ao mistério — não deixa dúvida de que esse é um começo que provoca o leitor e leva-a um longo duelo com o texto pela noite adentro ou, quem sabe, pelo dia adentro, com sol ou com chuva. E é claro também que uma ação provoca, aparentemente, mais entusiasmo do que um cenário — já ouvi dizer que os cenários estão mortos ou desaparecidos, puro engano, ledo engano — ou do que uma digressão — em muitos casos nem é bom falar em digressão.
Bem, pode ser — e sempre coloco a dúvida —, pode ser que seja assim, afinal o homem contemporâneo não tem tempo a perder. Quem acredita nisso colocaria em dúvida a qualidade, por exemplo, do primeiro capítulo de Dom Casmurro, o fabuloso romance de Machado de Assis. Porque se trata, na verdade, de uma digressão — digressão, aliás, que se estenderá por todo o livro — com aparência de cena de ângulo fechado — quando os personagens estão isolados e quando não se pode ver senão eles — na abordagem do poeta inominado ao personagem — Bentinho ou Casmurro — durante uma breve viagem de trem. Finge, o narrador finge. Mas ali não há apenas cena sobre cena e apenas uma digressão para que o narrador justifique o título do livro. Não adianta esperar a continuidade da ação: ela não virá. Além do mais, Machado de Assis adorava cenas de sono e vigília, que se repetirão em muitas das suas obras.
O que ocorre é que os narradores — autorizados pelos autores — costumam dissimular e é isso que os torna grandes. Narrar é o não-narrar. Sempre assim. Dizer é o não-dizer. Contar é o não-contar. Por isso, os leitores são seduzidos com tanta eficiência. Acreditam numa coisa e está acontecendo outra. Tudo isso, no entanto, é para demonstrar como o primeiro parágrafo de A educação sentimental, de Flaubert, é tão eficiente, mesmo parecendo um cenário humano quando na verdade é uma digressão. E os leitores nem gostam de digressão, não é? Ali, Flaubert consegue fazer uma digressão com ares de cenário humano, na expectativa de uma ação: afinal, o navio está prestes a sair e as pessoas estão desaparecidas? Desaparecidas, como? Tudo porque o narrador esconde os personagens mesmo com eles bem presentes. Frédéric está no leme — logo no leme —e ninguém ver. Frédéric o protagonista do romance. Nem aparecem Jacques Arnoux nem a Senhora Arnoux, por quem Frédéric arderá de paixão. Uma louca paixão de adolescente. Será que tem paixão de adolescente que não seja louca? Pudera.
Como isso acontece? Percebam:
No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montereau, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupa dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre os dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta , à proa, tocava sem parar.
Justamente isto: aí não há cena — apesar da citação do narrador — porque não há personagem importante para provocar a seqüência e a ação, e é cenário humano porque há pessoas se movendo mas sem objetividade narrativa. E como seria uma digressão? Porque o narrador finge apresentar um movimento objetivo quando é subjetivo: não tem efeito algum sobre a história, embora a história transcorra no navio. De propósito, ele retirou Frédéric que está no leme, mas não pode aparecer agora. Deve estar escondido para surpreender o leitor um pouco adiante. Não é assim?
É técnica pura. Frédéric, que deveria estar no cenário para transformá-lo em cena, está no leme, logo no leme, e o narrador esconde:
Um jovem de dezoito anos, de cabelos compridos, e que segurava um álbum debaixo do braço, conservava-se imóvel junto do leme.
Ou seja, não é verdade que o romance precisa somente — em muitos casos exclusivamente — de uma cena sobre cena na abertura do livro. O que é preciso mesmo é a sedução do narrador para atrair o leitor tanto em Machado de Assis quanto em Flaubert.
Exercício? Escreva uma cena, um texto de cenas sobre cenas, e depois retire os personagens, de forma que a narrativa se transforme em digressão. Para evitar problemas, use o artifício do cenário humano ou natural. É só um exercício; não precisa se preocupar.