Sem grito nem uivo

O narrador não precisa, necessariamente, ser dramático ou lírico, eloqüente nos adjetivos ou leviano nos advérbios
Vladimir Nabokov, autor do clássico “Lolita”
01/03/2013

O narrador não precisa, necessariamente, ser dramático ou lírico, eloqüente nos adjetivos ou leviano nos advérbios. Basta acreditar no sentimento da frase, da cena ou do cenário. Isso mesmo: basta contar e descobrir o ritmo correto. Precisa evitar as frases vaidosas. Aquelas que impressionam muitas pessoas, parecem belas, mas sempre interrompem o fluxo narrativo — e o leitor percebe logo a mão pesada do autor.

A leitura de O olho, de Nabokov (Alfaguara, 2011), mostra isso com muita clareza. É livro escrito com extrema sinceridade, na primeira pessoa, e que ressalta, mais uma vez, a diferença entre narrador e relator, entre dizer e narrar, como insistentemente destacamos aqui, considerando, entre outros livros, Dublinesca, de Vila-Matas.

Não significa que um seja superior ao outro. Mas me parece — sempre me pareceu — que o narrador leva vantagens sobre o relator. O primeiro mostra, sugere, inventa, enquanto o segundo diz, reforça, apresenta. Está aí a grande diferença, embora a realização do texto seja bastante sutil. O narrador-personagem desta novela apresenta-se de forma bem simples, digamos, indireta. Sem necessariamente dizer ou mostrar, narra. Pela ação, pelo movimento, substituindo o adjetivo pelo pronome. Coloca-se em oposição a Matilda — segundo a personagem — e faz o leitor entrar logo na temática do texto. Assim:

Conheci aquela mulher, aquela Matilda, durante o primeiro outono da minha existência como imigré em Berlim, no começo da década dos vinte de duas contagens do tempo, a deste século e a de minha torpe vida.

Sem dizer que Matilda fora um caso especial na sua vida e evitando a eloqüência do adjetivo — que significaria dizer —, o narrador carrega toda a força, grandeza e vigor no pronome repetido — aquela — que define a importância da personagem de forma ambígua — aquela é elogio ou desprezo? —, seduzindo o leitor pela sutileza.

Cria-se, portanto, uma curiosidade em torno de Matilda que remete o leitor a tudo o que virá na história. Observem: nada foi dito, mas a curiosidade é grande. Quem é aquela Matilda, uma mulher elegante, bela, atrativa? Ou aquela Matilda é desprezível, vigarista, desonesta, infiel? Com certeza, os fatos é que vão explicar, sobretudo quando se percebe que o personagem-narrador Smurov não passa de um jovem na casa dos vinte anos, o que é dito ainda com grande habilidade, como se vê no trecho acima.

Nabokov opta por um adjetivo que em nada engrandece o livro, porque os acontecimentos futuros vão explicar a narrativa, mesmo que a vida de Smurov seja mais acidentada do que torpe. Talvez o adjetivo seja proposital, para levar o leitor a outros caminhos. O autor não só inteligente, mas sobretudo criativo, em geral, procura essas sugestões que, na maioria das vezes, encanta e seduz o leitor, aquele que lê os detalhes, observa a construção da frase, as manobras do narrador, e não apenas passa os olhos, engole a frase sem saboreá-la. É preciso compreender que ler é como ouvir música: atentar para os acordes, para as soluções dos arranjos, para a movimentação dos instrumentos. Não basta ouvir a melodia, é necessário observar como o compositor ou o intérprete inventa e soluciona os detalhes.

Mesmo assim, não é estranho quando Nabokov decide entremear o narrador com o relator, até porque é preciso, muitas vezes, tomar o leitor pela mão. Torna-se necessário dizer, e não somente narrar. Quando a personagem feminina entra de vez na história, o narrador é mais direto e preciso — optando, ainda assim, por duas imagens sedutoras e sutilíssimas:

Matilda não foi minha primeira amante. Antes dela, eu havia sido amado por uma costureira de São Petersburgo. Ela também era roliça e também ficava me aconselhando a ler um certo romancinho (Murochka – A história da vida de uma mulher). Essas duas damas amplas emitiam, durante a tempestade sexual, um pio agudo, infantil, e às vezes me parecia um esforço perdido, o que havia enfrentado ao escapar da Rússia bolchevista, a fronteira da Finlândia (mesmo sendo por trem expresso e com uma prosaica permissão), só para passar de um abraço para outro quase idêntico. Além disso, Matilda começou a me entediar.

Na primeira imagem sutil, o narrador nos remete a um romance que dever ser popular na Rússia e que leva à compreensão do personagem, ou dos personagens; na segunda, compara o abraço com a fuga da Rússia, ou seja, podia abraçá-las, mas o sacrifício era imenso de tão gordas eram. Era tão difícil abraçá-las quanto fugir da Rússia nos primeiros tempos dos comunistas.

Todo o romance de Nabokov procura substituir o dramático pelo risível. Nada se afirma concretamente, tudo se realiza. Basta ler a surra que o marido de Matilda dá em Smurov, narrada em tom de farsa, quando a narrativa seria dramática — tudo porque ela, a narrativa, chega em primeira pessoa, sem eloqüência, sem drama, mas, ao contrário, com distanciamento.

Na verdade, a melhor lição de O olho é que Nabokov não é apenas autor de histórias sensacionalistas, mas um autor sofisticado e profundamente erudito.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho