Venho tentando, desde que comecei a escrever aqui, examinar a prosa de ficção parte a parte, montando e desmontando romances, novelas e contos, sobretudo os clássicos e consagrados, destacando aquelas obras definitivas —, incluindo Madame Bovary, que estabelece a ficção literária como obra de arte. Isso acontece a partir dos meados do século 19, invadindo o século 20 com suas vanguardas e inúmeros movimentos literários, até mesmo no Brasil, quando tivemos o Movimento Modernista, responsável por alterações significativas nas artes brasileiras, com a revelação de um mundo inteiramente novo, com bases nacionais. Ao mesmo tempo surgiu no Nordeste o Regionalismo, criado pelo mestre Gilberto Freyre — conservador e tradicionalista a seu modo, considerando elementos sociológicos e antropológicos, mas sem perder de vista o artesanato e as técnicas, trabalhadas, principalmente, por Graciliano Ramos, mesmo sem devoção a qualquer escola literária específica, sendo, ele próprio, um experimentalista, conforme destacou Otto Maria Carpeaux, em depoimento ao jornalista João Condé, da revista O Cruzeiro.
Talvez por isso mesmo, Graciliano se colocou logo como o maior romancista brasileiro daquela época: experimentando novas técnicas e cuidando do artesanato com incrível habilidade. Trabalhava aquilo que se convencionou chamar de estilo como a lavadeira que cuida da roupa lavando-a completamente, em primeiro lugar, depois enxaguando-a, passando água novamente para retirar a possível sujeira, e mais uma vez enxaguando-a, até que a roupa fique inteira e completamente limpa. Isso, na prosa de ficção, se chama artesanato. Primeiro escreve-se uma frase, com toda força do impulso criador, depois vem a intuição quando o escritor observa que algumas palavras precisam sair por excesso. Mais tarde, quando o primeiro parágrafo está escrito, procura a técnica, que lhe indicará o acabamento.
Neste caso, estou falando apenas de palavras e de frases. Há outras partes do romance que precisam ser analisadas separadamente: o diálogo, a cena, o cenário, a digressão, o discurso livre indireto, o monólogo, o solilóquio e todos os outros “elementos internos da ficção, como chamava o próprio Graciliano Ramos, em artigos esparsos que publicou em várias revistas e jornais”.
Aliás, esta é a distinção muito clara que se faz entre Graciliano e Zé Lins do Rego, o primeiro técnico e cuidadoso, enquanto o segundo se devotava ao episódio e à história, descuidando até mesmo da gramática e da estética, ligado profundamente à sociologia e à antropologia, discípulo de Gilberto Freyre, que era.
“Descuidar da gramática”, eis uma expressão interessante na prosa de ficção. Como isso acontece? E quando pode acontecer? No Regionalismo, por exemplo, a fala chamada errada, sobretudo na ficção, significa o registro documental ou sociológico da fala do povo, com o objetivo de fotografar o real, o concreto, o social para estudos, reflexões e análises de estudiosos no campo do comportamento. Mas não é exatamente assim para o Modernismo que usava o erro da fala no coloquial, principalmente, para possibilitar maior plasticidade na linguagem, tirando-a até mesmo da camisa de força da gramática conservadora e tradicional de origem portuguesa. Isso tudo podia ou pode acontecer na narrativa. Tudo isso nos deu, tanto no Regionalismo como no Modernismo, maior liberdade linguística, com uma prosa solta e livre.
No livro O cheiro da goiaba, jornalista Plinio Apuleyo Mendonza entrevista longamente Gabriel García Márquez. A certa altura quer saber por que Gabo usa tão poucos diálogos. Ele responde esclarecendo que os diálogos em espanhol não são espontâneos. Aí está a diferença entre os espanhóis e os brasileiros. Nós precisamos criar uma língua para sermos brasileiros, distanciando nossa prosa do português clássico, tradicional, gramatical. Aproveitando, assim, a riqueza da linguagem popular, na expressão de Mário de Andrade.
Trazemos para a prosa ficcional a linguagem popular sem questionamentos. Isso também é técnica. Isso também é artesanato. O uso da linguagem equivocada enriquece a linguagem erudita.
Mesmo assim, podemos destacar que essa técnica não acontece na obra de Graciliano Ramos, mas é usada, com reiteradas repetições na de José Lins do Rego, profundamente documental. Tudo porque Graciliano tem características de renovação linguística sem cópia da realidade; destacando aí o experimentalismo do alagoano. É preciso, portanto, estar atento a estas técnicas que aparentemente, e só aparentemente, não parecem com técnica. Em geral, imagina-se técnica somente aquilo que é sofisticado ou vanguarda. Não é bem assim. Basta observar as características de cada escritor e suas qualidades literárias.
Pode-se acrescentar que até mesmo a espontaneidade de um escritor pode ser uma forte característica técnica ou artesanal como acontece, por exemplo, com Jack Kerouac, o revolucionário da prosa norte-americana ou mundial, a partir dos meados do século passado.