Sartre termina o livro O que é a literatura? com uma frase demolidora e exaustiva: “A humanidade passaria muito bem sem a literatura”, depois de investir terrivelmente contra escritores e escolas literárias. Irritado, anotei a seguinte frase: “A literatura, sim; mas A LUTA VERBAL, não”. Estava nascendo aí a minha longa reflexão sobre a função social do escritor, que é uma exigência natural daquele que usa a palavra para enfrentar a realidade, sobretudo a brutal e terrível realidade brasileira, sempre injusta. De cara, discordo de Sartre quanto ao uso das técnicas, que começa com a sedução do leitor, até porque todo leitor é ingênuo. Em princípio, destaco que a técnica não é, em absoluto, uma diversão burguesa do autor, mas uma arma, muito poderosa, de enfrentamento e de destruição do conservadorismo e da tradição como ocorre, por exemplo, com a vanguarda de Joyce e com o riso de Ariano Suassuna com João Grilo e Joana Quaderna, em muitos casos confundido com o “sorriso da sociedade”, sugerido por Afrânio Peixoto, escandalosamente.
Até porque no princípio da história literária brasileira foi criada uma literatura de baixo nível e de sofrível qualidade, em que se destacavam o folclorismo inconsequente e os louvores de um regionalismo insípido. Porém, a literatura universal percorria este caminho, que foi duramente contestado por Sartre, não fugindo de sua fúria nem mesmo o sofisticado Flaubert, autor de uma obra requintada com habilidade que fugiu à compreensão do filósofo francês. Ocorre que Flaubert não era só um teórico e um técnico da ficção, embora suas técnicas deslumbrassem críticos e leitores. Flaubert era antes de tudo e, principalmente, um romancista social sendo a defesa da mulher uma das suas bandeiras mais decisivas, sobretudo em Madame Bovary, analisado sempre pelo erro dos conservadores e dos tradicionalistas, que viram no livro o elogio do desregramento da mulher casada, num assombroso machismo literário. Emma Bovary não era, em absoluto, uma mulher prostituída, vocacionada para trair o marido, mas uma rebelde destinada a quebrar com as convenções.
Este romance, com suas variações de técnicas revolucionárias, é, sim, o elogio da mulher destinada à rebelião, diante de um marido sonolento e preguiçoso, em tudo fracassado e deselegante, um médico incompetente e um cirurgião ainda pior, insípido e moleirão, sempre de pijama e touca. Afinal, não pode existir nada pior do que um homem insípido, de touca e chinelos. Um conservador que só provoca a ira e a revolta feminina como acontece com a metáfora de madame Bovary, e a própria enganada pelos seus sonhos e pelos seus desejos. É neste sentido que vamos encontrar esta personagem envolvida por técnicas devastadoras, nunca entendida pelo gênio de Sartre, que exigia uma história direta e incisiva, quase um panfleto.
As técnicas, neste sentido, desmontam o conservadorismo de modo que também desfazem o tradicionalismo da narrativa pronta, arrumada, perfeita. Mesmo sem esquecer a palavra perfeita, o mote justo que a poesia tanto reclama. Tudo isso é a técnica para Flaubert. Técnica que Sartre insistiu em não ver para, afinal, defender prontamente o seu existencialismo. Briga de titãs. Sem dúvida, mesmo que Flaubert nunca tenha dado atenção mesmo aos seus críticos. De minha parte menor, a parte menor desta luta, sempre entendi a técnica como um desmonte do tradicionalismo para não ficar repetindo e somente repetindo o que fora dito elos gigantes da literatura universal.