Ritmo narrativo ou tempo psicológico do leitor

O ritmo narrativo é uma técnica que sempre preocupa o ficcionista
Ilustração: Bruno Schier
18/02/2016

O ritmo narrativo é uma técnica que sempre preocupa o ficcionista, mesmo quando é um desses artistas que nega a importância da estratégia elaborada, jogando toda a responsabilidade para a intuição, para a inspiração e para o talento. Todos estes elementos existem, sim, mas precisam do apoio do estudo sistemático, do conhecimento, da análise detalhada. Faça o que quiser, escreva o que desejar, crie conforme suas necessidades, mas não esqueça que conseguirá sempre melhores efeitos se tiver sempre consciência de suas possibilidades.

Podemos dizer que Flaubert foi um criador, por assim dizer, científico. Em cartas que escreveu sistematicamente para amantes e amigos, revelou como e por que escreveu cada palavra, cada cena, cada cenário, despojando-se da inspiração e mostrando, humildemente, que precisava de um grande esforço para superar as dificuldades criadoras. Isso mesmo, a maior qualidade de Flaubert era a humildade. Para escrever uma palavra, precisa de muitos rascunhos. E dizia isso com imensa tranquilidade. Os nossos gênios, porém, acreditam que tudo nasce da inspiração e do talento. Basta uma caneta e um papel e as musas começam a ditar palavras maravilhosas e encantadoras, notáveis e revolucionárias.

O talento e a inspiração podem e devem ser úteis para gerar o impulso criador, mas além disso é preciso estar consciente de cada palavra, de cada sinal gráfico, de cada situação. Mas nem isso é garantia de grande obra. Quem acredita apenas no talento e na inspiração para criar obras artísticas sem dúvida também acredita em musas para estabelecer os caminhos da invenção.

No começo de Madame Bovary — de que já tratamos aqui — Flaubert ousa recorrer à primeira pessoa do plural, o que causou espanto nos estudiosos do texto e ainda hoje provoca os mais acalorados debates. O nós é motivo de análise em Orgia perpétua, de Mario Vargas Llosa, que se constitui numa análise rigorosa de Madame Bovary, a inquietar exegetas de todo o mundo. Pergunta-se insistentemente: Como um narrador pode falar por muitos? Para mim, é um artifício literário para reunir, num só ponto de vista, os narradores múltiplos ou, para muitos, o narrador plural. Num toque de mágica criativa, Flaubert reuniu num só todos ou narradores ou todas as técnicas narrativas neste romance que se transformou num verdadeiro Manual de Criação Literário — tal volume de recursos que envolveu a narrativa, dando início àquele que seria o divisor de águas na história da narrativa universal.

No primeiro capítulo de Madame Bovary, por exemplo, fica bem clara a preocupação de Flaubert com o ritmo narrativo, dosando a velocidade dos primeiros movimentos do romance.

Basta lembrar que da epopeia até o romance dos meados do século 19, o romance era apenas um ensaio disfarçado, onde o ficcionista usava o narrador e os personagens para debater ideias. Tratava-se muito mais do uso do conteúdo material — temática, estudos, pontos de vista — dispensando-se o conteúdo literário — composição de cenas, cenários, diálogos, personagens. Em Flaubert, o conteúdo literário é privilegiado. A temática está ali, é verdade, mas submetida aos elementos artísticos — ao que Graciliano Ramos chamou de elementos essenciais da narrativa. Graciliano não deixou nenhum manual de escrita criativa, mas as ideias centrais das suas preocupações com a narrativa podem ser encontradas em Linhas tortas, livro relegado a segundo plano pelos estudiosos sempre interessados em apresentá-lo como um matuto que deu certo na literatura.

No primeiro capítulo de Madame Bovary, por exemplo, fica bem clara a preocupação de Flaubert com o ritmo narrativo, dosando a velocidade dos primeiros movimentos do romance. A narrativa começa célere, com rápida passagem pela fala do diretor, mas estanca no terceiro parágrafo, quando a narrativa abre espaço para o perfil físico de Charles:

Era um rapaz do campo, de quinze anos mais ou menos, mais alto que qualquer de nós, os cabelos rentes sobre a testa, como um sacristão de aldeia, um aspecto compenetrado e acanhadíssimo. Embora não fosse espadaúdo, a jaqueta verde de botões pretos, muito apertada nas ombreira, devia incomodá-lo bastante. Pela abertura das mangas, viam-se dois punhos vermelhos, acostumados à nudez. As pernas enfiadas em meias azuis, saíam-lhe dumas calças amareladas muito repuxadas pelos suspensórios. Calçava uns sapatos grosseiros, mal engraxados, reforçados com pregos.

Observem que a narrativa parou para que a descrição do personagem tenha destaque, impondo-se a presença definitiva de Charles, mas o fluxo narrativo é interrompido. Ao contrário de Emma Bovary, Charles chega e se impõe. Logo em seguida, o foco narrativo é centrado nele novamente, fazendo o ritmo tornar-se ainda mais lento. Uma frase de passagem lembra o toque de uma flauta: “Começou-se a recitar a lição”.

Em seguida a narrativa torna-se lenta, num movimento sedutor:

Ele era todo ouvidos, atento como a um sermão, sem ousar mesmo cruzar as pernas ou apoiar-se no cotovelo. E, às 2 horas, com o toque da sineta, o professor teve de avisá-lo de que era preciso entrar em fila conosco.

Talvez por isso, Nabokov tenha chamado Madame Bovary de narrativas em camadas; prefiro chamá-lo de Narrativa musical pela alternância dos movimentos, muito usual em partituras sofisticadas, embora muitas vezes utilizadas em composições populares. Pretendo aqui, justamente, aproximar a literatura da música, artes em que os ouvidos têm função muito destacada. Ler uma partitura é tão inquietante quanto ler um romance ou uma novela, cabendo ao ouvinte fazer uma segunda leitura, por assim dizer, da partitura. Na literatura, um texto é lido pelos olhos e pelos ouvidos; cabendo aos ouvidos esta segunda leitura. Daí a preocupação imensa com os sons das palavras e suas colisões. Tudo começa aí, com certeza. Basta um estudo bem elaborado.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho