Por favor, não pise jamais no pé do seu leitor

Assim como numa valsa, ritmo e andamento são fundamentais aos textos de ficção
O crítico literário James Wood, autor de “Como funciona a ficção”
01/03/2012

Em Como funciona a ficção, publicado recentemente pela Cosac Naify, James Wood fala claramente do ritmo e, sobretudo, do andamento da narrativa a partir de Gustave Flaubert. Ele esmiúça o olhar do protagonista de A educação sentimental, Frédéric, pioneiro daquilo que denominamos flâneur — o ocioso que vagueia pelas ruas sem pressa, olhando, vendo, refletindo.

“O olhar do ocioso, pela própria natureza, torna o andamento mais lento, devagar, espaçado, quase parando o tempo e se fixando, quase sempre, em cenários ou personagens de muda atividade, sem pressa, quieto, mesmo dentro de um quadro de ação rápida”, observa Wood. Está aí o fundamento do flâneur, umas das criações mais notáveis de Flaubert, gênio imbatível quando falamos na montagem do texto. Tomemos como exemplo um trecho de A educação sentimental:

A planície, revolta, dava uma impressão de vagas ruínas. A linha das fortificações formava uma saliência horizontal nos passeios de terra que ladeavam as estradas, arvorezinhas sem ramos eram defendidas por ripas eriçadas de pregos. Estabelecimentos de produtos químicos alternavam com estâncias de madeireiros. Portões altos, como há nas fazendas, deixavam ver, pelos batentes entreabertos, o interior de pátios ignóbeis, cheios de imundices, tendo a meio charcos de água suja. Compridas tabernas cor de sangue e bichos ostentavam à altura do primeiro andar, entre as janelas, dois estandartes.

Observa-se aí que o andamento é bem lento, com muitas vírgulas, quase frase sobre frase — na verdade, uma frase puxando a outra, com muitos, muitos detalhes, de forma que o leitor é obrigado a diminuir a marcha da leitura, tornando-a quase parada. É o tempo próprio do ocioso, que vê lentamente, e com detalhes, às vezes desnecessários, mas que tem tempo para a leitura, até letra por letra. Um romance pode ter muitos andamentos, mas apenas um ritmo. O ideal é que o autor altere os andamentos de acordo com o sentimento da cena: triste, mais triste; alegre, mais alegre, mexendo assim com o ritmo psicológico do leitor.

James Wood chega a indicar compassos na mudança de andamento, mas não sei até onde o escritor está preparado para isso, nem se é necessário ser assim tão rigoroso. Basta que se arme o ritmo mentalmente, usando-se, sempre que possível, vírgulas, ponto e vírgulas, pontos, comentários, travessões, digressões, cortes, elipses ou avanços, sempre de acordo com a mudança de andamento. Se alguém disser ao autor — ou até mesmo ao leitor — que o compasso é 3/1 ou ternário, é possível que não obtenha resultado algum; mas, se pedir uma valsa, então será atendido prontamente; se 2/4 é um compasso comum, pede-se, porém, um ritmo de bolero, de uma canção, e o problema estará solucionado. Mas atenção: tudo depende do personagem a quem se entrega a narrativa. Se o autor conhece bem o personagem, então conhece bem o compasso. Nada de extremamente complicado nem difícil. O autor sempre saberá que ritmo ou que andamento quer seguir.

James Wood volta a falar em Flaubert e sua Madame Bovary, referindo-se à famosa cena do jantar na casa do Conde, que prepara Emma para a vida dissoluta que ela levará ao longo do livro. A cena, que se revela metafórica, é uma das mais belas e mais reveladoras do texto flaubertiano:

Na extremidade da mesa, sozinho entre todas aquelas mulheres, curvado sobre seu prato cheio e com o guardanapo preso às costas feito uma criança, um ancião comia, deixando cair da boca gotas de molho. Tinha os olhos congestionados e trazia os cabelos presos na nuca, por uma fita preta. Era o sogro do velho marquês, o antigo favorito do conde de Artois ao tempo das caçadas de Vaudreuil, na residência de Conflans e que fora, dizia-se, de Maria Antonieta, entre os srs. de Coigny e de Lauzun. Levara uma ruidosa vida de dissipação, cheia de duelos, de apostas, de mulheres raptadas, devorara sua fortuna e preocupara toda família.

Percebe-se, claramente, que os detalhes são bem selecionados pelo olhar que, no entanto, não perde a capacidade de refletir, sobretudo nas últimas linhas, o que leva a imaginar que se trata, também, de algo metafórico, onde Emma pode vislumbrar seu próprio futuro, naquele instante em que ela é ainda ansiedade e desejo. Portanto, este pode ser classificado de um caso para se detalhar e esquematizar, para recorrer, num capítulo de passagem. Ou seja, aquele capítulo que prepara o leitor para o destino narrativo que se segue.

Para aperfeiçoar a técnica, o autor pode recorrer ao desenho, como era o caso de Erico Verissimo, e não procurar detalhes de última hora. Pode usar os detalhes numa segunda versão e só então dar o texto por encerrado. É preciso esquematizar e não apenas improvisar. A criação pede vários caminhos. Faça vários estudos e várias versões, de forma a passar ao olhar do personagem a voz que seria do narrador onisciente. No Brasil, a técnica do olhar e da voz do personagem-narrador substituindo o narrador onisciente é muito bem usada por Cristovão Tezza, sobretudo em Beatriz, seu livro de contos, publicado pela Record. Exemplo:

Ele é tão fofinho, Arminda pensou (e os estudantes olharam para mim, como a avaliar se deviam mesmo acreditar no que eu dizia, esse velho e superado narrador onisciente, quem acredita nisso? — A palestra próxima do final, a voz sumindo), mas temeu confessar em voz alta; o marido compreende o que ela quer dizer — é claro, mas há limites — um bom silêncio vale ouro.

É claro que o autor pode e deve escrever como lhe parecer mais conveniente. Mas não custa lembrar que ritmo e harmonia sempre foram destaques especiais do estudo da estética. Nesta aula estudamos ritmo e andamento, mas, lembrando o dito popular, sem perder a harmonia.

NOTA
O texto Por favor, não pise jamais no pé do seu leitor foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco, de Recife (PE). A publicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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