Aristóteles é muito claro e incisivo, direto e objetivo: o personagem é a metáfora em ação. Está na Poética. Basta ler e estudar. Vejam, por exemplo, a obra de Kafka, cujos personagens representam sempre uma ideia e movimentam-se conforme as variantes do discurso, até porque o autor tcheco perseguia obstinadamente as reflexões sobre as dores do mundo.
Objetivamente, nenhum ser humano se transforma num inseto. Pelo menos, até onde a ciência pode averiguar. Mesmo assim, Nabokov, ao examinar o assunto, chega a estudar vários tipos de insetos. Ele procura demonstrar se é uma barata ou qualquer outro tipo de inseto.
Este não é o caso agora. O que interessa mesmo é demonstrar que esta afirmativa de Aristóteles é verdadeira. Um ser humano pode se sentir deprimido, exausto, derrotado, sem forças e isso o levará a dizer: eu hoje estou um inseto. Isto é uma metáfora. Mas se disser: eu hoje me sinto um inseto. Isto é uma símile. Reduz a expressão a uma comparação. Não tem grandeza literária.
Na metáfora, a imagem tem que substituir o objeto perfeitamente. É isto o que Kafka faz. Parece-me, portanto, que independentemente de barata ou de outro inseto qualquer o que importa é a metáfora. A exatidão da metáfora. Um homem fracassado, humilhado, derrotado é um inseto. Foi transformado. Ainda que seja apenas na linguagem literária. Nós mesmos dizemos isso no dia a dia. Com a vantagem de que é algo muito simples, facilmente assimilável. Asqueroso, sem dúvida. Quantas vezes nos sentimos nojentos ou enojados.
Mas Kafka não fica apenas na imagem, faz a metáfora entrar em ação. A vida de Gregor Samsa torna-se a vida de um inseto, movimenta-se como um inseto, anda como um inseto, mesmo quando as pessoas não veem, nem mesmo sabem o que acontece. Com certeza, o mundo de Kafka é feito de metáforas e de imagens, muitas metáforas, muitas imagens.
Observando-se bem, o início de A metamorfose substitui um grande monólogo através destas metáforas e destas imagens em que Samsa parece se perguntar o que é melhor para o homem: permanecer em casa ou sair para o mundo, enfrentando guerras e tempestades. Gostaria tanto de ficar em casa, deitado, mas é preciso sair e trabalhar para pagar as dívidas do pai. O que é isso senão a metáfora em ação?
Assim: “Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e se esquecesse de todas essas tolices? — pensou, mas isso era completamente irrealizável, pois estava habituado a dormir do lado direito e no seu estado atual não conseguia se colocar nessa posição”. Na verdade, a grande questão é que ele teria de trabalhar mas o corpo — agora o corpo de um inseto — não ajudava nem a dormir nem a trabalhar. Eis o drama de Samsa.
Eis o drama da literatura e suas metáforas. Dessa forma, Kafka alcança altíssimo nível literário. Mas Nabokov, do alto de sua intelectualidade recorreu a uma metáfora humana — Lolita — para criticar a obsessão sexual do Ocidente. A loucura do personagem masculino equivale a uma sociedade doente cujo olhar se lança apenas aos clamores do sexo e suas loucuras. Por isso, Lolita é a metáfora mais perfeita dessa sociedade sacrificada até mesmo pela beleza e pela fragilidade de uma ninfeta, ela própria confusa e desorganizada. Não se deve esquecer o símbolo e a metáfora mais apropriada para o nosso tempo — o sexo e a exploração extraordinária.
Cabe ao bom eleitor — o leitor inteligente de que falam os formalistas russos — identificar estas metáforas, estes símbolos e estas imagens para reconhecer as dores e as alegrias contemporâneas. Mesmo que pareça estranho, estranhíssimo, misturando num só movimento, ninfetas e insetos.
Lembro também o caso de José Lins do Rego em Fogo morto, em que aparece o coronel Vitorino Carneiro da Cunha, o Vitorino Papa Rabo, que é a metáfora de todos os coronéis nordestinos caídos em desgraça, completamente, falidos e motivo de risos em todos os lugares. Ao lado dele há ainda o coronel Lula de Holanda, também falido, mas deprimido e arrasado, e do sapateiro Zé Amaro, louco depois de acusado de estuprar a filha, transformando-se num lobisomem, afastando os parentes e os amigos do seu convívio.
Neste caso, o lobisomem é a metáfora da decadência humana na região e das mudanças nas relações familiares. Fogo morto é, sem dúvida, um dos grandes livros da literatura brasileira em qualquer tempo histórico.
Também se constitui em metáfora o personagem Pedro Honório, de S. Bernardo, embora Graciliano Ramos dissesse que não gostava de metáforas, talvez para atender ao realismo do Partido Comunista, de que se tornara associado ao chegar ao Rio de Janeiro. Mesmo assim, Graciliano lançou mão de metáforas em muitos dos seus escritos, notadamente em Vidas secas, seu romance mais exaltado pela crítica brasileira.