Para sempre bela e maldita

Raimundo Carrero defende que a grandeza de Fitzgerald está em sua opção frívolo
F. Scott Fitzgerald, autor de “O curioso caso de Benjamin Button”
01/08/2013

“Não chore. Transforme suas dores em literatura.” Este foi o conselho que F. Scott Fitzgerald ouviu de Ernest Hemingway enquanto bebiam litros de uísque com soda num bar de Paris, na década de 1920. Naquele momento, o autor de O grande Gatsby contava ao colega norte-americano detalhes do seu trágico relacionamento com Zelda — a bela e frágil Zelda, com graves ataques de esquizofrenia, sem contar as brutais bebedeiras, irresponsabilidade desenfreada e festas, muitas festas.

Ainda assim foi este mundo escandaloso, cruel, festeiro e desumano que Scott Fitzgerald levou para a sua obra literária, em que se destacam romances escancaradamente humanos e volúveis, com personagens embriagados que se arrastam pelas ruas, freqüentam bailes luxuosíssimos, dirigem carros muito caros e estouram a vida pelas esquinas.

Por isso precisou de muito tempo para ser reconhecido pela crítica, apesar dos elogios de Edmundo Wilson, na época uma espécie de bússola literária nos EUA. Aliás, Wilson lutou para tirá-lo daquilo que considerava vulgar, mas o romancista sabia, com força, que ali estava sua matéria-prima e viveu para transformá-la em textos fulgurantes, belos e precisos. Eles chegaram a ter atritos sérios, porque o crítico costumava ironizá-lo e escarnecê-lo, comparando-o ao que havia de pior na literatura norte-americana. Wilson temia que ele se transformasse num romancista para moças. De fato, a abertura de Suave é a noite, por exemplo, parece o princípio de um livro para meninas que estudam em regime de internato:

Na agradável costa da Riviera francesa, mais ou menos a meio caminho entre Marselha e a fronteira italiana, ergue-se um hotel grande, altaneiro, cor-de-rosa… O Hotel e sua praia, que parecia um tapete bronzeado e luminoso, formavam um todo… A uma milha do mar, onde pinheiros cedem lugar a álamos empoeirados, há uma solitária parada de estrada de ferro, para onde, nesta manhã de junho de 1925, uma vitória trouxe uma senhora e sua filha, em busca do Hotel de Grausse. O rosto da mãe tinha uma beleza murcha e que logo ficaria marcada por veias visíveis; sua expressão era, de maneira agradável, ao mesmo tempo tranqüila e vigilante. Mas o olhar de qualquer pessoa se voltaria imediatamente para a filha, que tinha mãos encantadoras e faces lindamente rosadas, com o excitante colorido das crianças, após o banho frio da tarde. A bela fronte subia suavemente até o ponto em que o cabelo a emoldurava como um elmo, cascateando em ondas e cachos de um louro cinza e dourado. Olhos eram brilhantes, úmidos e luminosos; o corado das faces era natural, trazido à superfície pelo fluxo de um coração moço e forte. O corpo ainda lembrava delicadamente o final da adolescência. Tinha perto de dezoito anos, estava quase formada, mas ainda conservava uma frescura de menina.

Sem dúvida um texto cor-de-rosa, mas que manteria, para sempre, a inigualável força estética de Fitzgerald, mesmo naqueles instantes de maior movimentação, como no conto A feiticeira ruiva:

Por toda parte, em torno dela, havia rostos — rostos barbeados, e costeletas, velhos, jovens de idade e, aqui e acolá, uma mulher. A massa humana estendia-se rapidamente até a calçada oposta, e como os fiéis saíam naquele instante da Igreja de Santo Antônio, situada logo atrás da esquina, se alastrou por toda a largura da rua, comprimindo-se de encontro à grade de ferro da casa de um milionário. Os automóveis que seguiam pela avenida foram obrigados a parar e, num abrir e fechar de olhos, se amontoaram três, cinco, seis, junto da multidão; ônibus de dois andares, tartarugas do tráfego, com a parte superior repleta de gente, meteram-se no aperto, os passageiros a espiar o centro daquele conglomerado humano, que, naquela altura, dificilmente poderia ser visto de baixo.

O aperto se tornara medonho. Nenhuma assistência elegante num jogo de rúgbi entre Yale e Princeton, nenhuma multidão sufocante num campeonato nacional de beisebol, podia comparar-se ao povaréu que conversava olhava, ria e buzinava em torno da jovem senhora de preto e lilás. Era estupendo; era terrível. Um quarto de milha rua abaixo, um policial telefonou para sua delegacia; na mesma esquina, um cidadão, assustado, quebrou o vidro de alarma de incêndio, pondo em movimento todos os carros de bombeiros da cidade; no alto do seu apartamento, num dos edifícios mais altos, uma solteirona histérica telefonou, por sua vez, para um agente da lei seca, para deputados encarregados de estudos relativos ao bolchevismo e para a seção de maternidade do Bellevue Hospital.

Uma extraordinária cena de multidão, com fino equilíbrio estético, harmônica, embora no final tenha tratado de vários quadros com o mesmo ardor e fervor de quem vê um filme em vários ângulos, situando personagens e situações diferentes para formar um todo. Este sentimento de equilíbrio nunca faltou a Fitzgerald, mesmo quando aborrecia os críticos, em especial o exigente Edmund Wilson, que não entendia o apego do romancista a coisas simples e vulgares. Coisas simples e vulgares, mesmo luxuosas e elegantes, que podem também construir a Grande Arte, como comprovou a obra de Flaubert, sobretudo em Coração simples. Há, ainda, a extravagância, que deu a Fitzgerald o toque de originalidade, revelado nos romances de maturidade. Foi justamente por substituir o trágico pelo frívolo que ele se tornou fundamental.

NOTA
O texto Para sempre bela e maldita foi publicado originalmente no jornal Pernambuco, editado em Recife (PE). A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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