Mario Vargas Llosa tem razão quando escreve que “o narrador é o personagem mais importante de todos os romances, sem nenhuma exceção, e aquele do qual dependem todos os demais (Cartas a um jovem escritor, Elsevier, tradução de Regina Lyra). É a partir daí, creio, que começa a discussão a respeito de estilo. Sobretudo porque ele adianta, de forma enfática, que muitos escritores, de fato, acreditam que são os narradores. “Estão errados”, acrescenta. A mão de ferro força a narrativa. Um ótimo começo e um bom debate.
Não se pode negar que desde sempre os escritores lutaram por um estilo. Até porque acreditaram — e acreditam — que o estilo é a principal característica da obra. E não só da obra, principalmente do autor. No tempo da glória do romance havia mesmo um escritor, e, em geral, mais do que um autor, como já se disse, verdadeira mão de ferro. Jorge Amado, no primeiro parágrafo de A morte e a morte de Quincas Berro D’água, chega a despejar acusações aos críticos, defendendo-se, num parágrafo desnecessário e forte. Que se pode fazer? Aquele é que se costumou chamar de estilo de Jorge Amado. Nem se discute. Graciliano Ramos, com todo o rigor formal, abre Vidas secas com piedade dos personagens, a quem chama de os infelizes. E sempre que simpatiza com os meninos, filhos de Fabiano e Sinhá Vitória, trata-os de “os safadinhos”.
É o estilo de Graciliano e não se discute. Embora não seja o mesmo estilo de Angústia ou de São Bernardo. É evidente, portanto, que Graciliano tem um estilo que o consagrou por causa do rigor formal,mesmo quando altera, minimamente, aqui e ali. Não se está aqui criticando nem Jorge Amado nem Graciliano Ramos. É uma constatação para efeito de análise. Ambos com suas grandezas e defeitos. Isso mesmo. O que se quer mostrar é a diferença entre o escritor, ou autor, e o estilo. Como se pode discutir o mesmo tema em Dostoiévski e Kafka, por exemplo. Ou entre Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Que seja. Mas afinal o que é mesmo o estilo? Há muitas definições. A maioria se preocupa com a questão da linguagem. Se só. E apenas. É preciso ter muito cuidado.
Diz-se que estilo são as características lingüísticas de um autor. Está ligado à linguagem. E pronto. Na verdade é algo mais complexo, envolve uma série de elementos. E estendem-se os exemplos a escolas literárias, a épocas, a circunstâncias. Isso. Mas o estilo na criação literária — que é o nosso caso — não está ligado apenas à linguagem ou às exigências gramaticais. Ou sequer à desorganização. Nada disso. Vai muito mais além. Está ligado à maneira como o autor distribui os personagens, como eles entram ou saem de cena, como falam, como se comportam, a maneira de se relacionar com outros personagens, desenvolvimento de enredo, enfim, como o texto é estruturado. O estilo é a totalidade e não apenas, digamos, as frases, os parágrafos. E até mesmo aquilo que costumamos chamar de atmosfera. Enfim, o estilo são as características do autor.
Talvez nem se possa chamar de estilo, considerando-se o nível de complexidade. Não tenho essa palavra e prefiro continuar usando-a, sobretudo naquele sentido estabelecido por Alejo Carpentier em estudo brilhante: O estilo das coisas que não têm estilo. Até porque o crítico vai continuar chamando de estilo. Pois bem, nasce com Flaubert o escritor sem estilo, nesse sentido tradicional. Aquele que segue a mesma linha estrutural da frase em todos os livros. Ou seja, cada livro de Flaubert tem uma linguagem diferente, sobretudo no uso das expressões. Em princípio, o personagem pede o seu estilo próprio. O estilo de Madame Bovary não é em absoluto o estilo de Educação sentimental. Se mudo o personagem, muda a forma de escrever. Madame Bovary é mais enfático e, até certo sentido, emocional. Foi justamente este aspecto emocional que Flaubert retirou completamente de Educação sentimental e precisou, assim, alterar a estrutura da frase e, mais adiante, a apresentação do personagem, optando pela frieza do narrador onisciente e pelo comportamento de Frédéric. Embora tomado de amor pela Madame Arnaux, não permite arroubos de paixão sobretudo naqueles três primeiros capítulos, onde o personagem é tomado de tédio.
Pode-se dizer, compreendo perfeitamente, que um homem com tédio não se pode arder de amor. Compreendo. Mas não é assim. Ocorre que Flaubert exercitou ali o que ele achava essencial no romance: a emoção estética. Para ele, a frase valeria pela qualidade de suas palavras e jamais pelo conteúdo científico. Ou seja, sem a pregação religiosa, sem a documentação sociológica, sem os questionamentos científicos. A frase vale pela sonoridade ou não, pelo ritmo ou pelo andamento. Estética, pura estética, sem ter que provar nada, sem discutir nada, sem revelar nada — daí o possível romance sobre nada e que muita gente confundiu. “Le mote just” não servia para todas as frases, de maneira uniforme. A frase pertencia ao que se pode chamar o estilo do personagem e poderia mudar de um para outro, desde que fosse mantida a unidade do texto. A harmonia do romance.
Devido a este projeto literário, Flaubert retira o autor do texto e, segundo Mario Vargas Llosa, até mesmo o narrador, criando-se a figura do relator invisível. Por quê? Porque o narrador corre o risco de se emocionar, de se exaltar, de questionar. De forma que ao narrador “não é permitido celebrar as alegrias de seus personagens nem se apiedar de suas misérias: sua única obrigação é comunicá-la”. Assim muda-se tudo na estrutura da narrativa, conseguindo-se o texto pela Beleza da frase, do parágrafo, da página. Funda-se, dessa maneira, a sedução pelo olhar, pelo ver, antes mesmo da leitura, durante a leitura e depois da leitura.
Será possível então fazer exercício de estilo? É claro que pode. Leia uma história de jornal, em qualquer área, e conte-a em cinco linhas sem adjetivos, sem advérbios de modo, por exemplo, usando apenas a emoção estética. Ou seja, a frase bem elaborada, sem ansiedade, angústia ou prazer. Não é uma questão de concordar ou não. Basta fazer. Enfim, é apenas um exercício.