Com uma habilidosa técnica literária — falo em técnica e não em regra, que isso não existe no campo da escrita —, Marcela Dantés chega às livrarias com seu terceiro livro, Vento vazio, lírico e árido ao mesmo tempo, reunindo personagens que não existiriam se não fosse a sua inquestionável habilidade literária no manejo da criação artística. Mais do que apenas literária, superando o humano e o fantástico, nesta primeira lição de como se comportam os criadores, a quem não bastam as palavras e a pontuação, mas uma visão do mundo que reúne o trágico e a dor de enfrentar o vento.
É claro que se pode falar em narrativa montada num monólogo em que este protagonista, o vento, geme em todas as páginas, cedendo espaço ou abrindo caminho para vozes que vão se ajustando ao longo da história, premidos pela necessidade do texto, em busca de consequências literárias que, em outras mãos, pareceriam meras aventuras, até porque uma coisa é técnica, outra é aventura literária, assim como aquilo a que chamam de regra, outra aventura que é apenas constrangimento. A regra é fixa e não acrescenta, pelo contrário, enclausura a criação. A técnica ilumina e abre caminho para a invenção; a regra entorpece, diminui e cega. Tudo conforme a dor de criar. Sem mais delongas, Marcela conhece a diferença e, por isso mesmo, escreve uma história invejável, sem misturar as funções. Narrador é narrador, autor é autor.
Também levei tempo para me convencer. Quanto trabalho. Quem me ensinou, finamente, foi Clarice Lispector. Em A Hora da estrela, ela destaca que é autora, mas o narrador é Rodrigo S. M.
Assim está no livro: “A história — determino com falso arbítrio — vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro”. Mas como seria aqui um monólogo. Aliás, o que é um monólogo? É um texto em primeira pessoa, ilógico, sem ordem, diferenciado. Ele está quase sempre em oposição ao solilóquio.
Pronto, sem questionamento ou dúvida: o narrador é Rodrigo S. M. Clarice é a autora.
Em Vento vazio uma questão muito mais séria — a estrutura do narrador —, existiria mesmo um narrador? — é desmontada pelas vozes do vento. Algo intrigante, desafiador. Por isso mesmo é que se diz na orelha didática:
Um típico narrador a quatro vozes, Vento vazio desdobra a vida desses moradores, ligados tanto pelo espaço que partilham quanto pelos fantasmas que os acompanham.
E o solilóquio? O que é um solilóquio?
É ordenado, organizado, pronto. E sabem por quê? Porque é matéria do narrador consciente.
Seria fluxo da consciência?
Uma narrativa em primeira pessoa ou mesmo uma falsa primeira pessoa com mudança de ritmo, destacando-se a riqueza alucinante desse ritmo, as elipses e as aliterações.
Mas também não é fluxo da consciência.
E, então, é o quê?
É vento vazio.
Eu, eu sei, estou perdendo o juízo.
O que importa, porém, é que Marcela Dantés escreveu uma história bela, forte e cativante, com personagens que seduzem o leitor. Maura na frente, com ou sem vento, com ou sem roupa, uma menina, esta menina, num mundo de loucura que não há nada melhor do que uma louca sem roupa, com o vento assombrando o juízo. Venham, venham, a beleza acabou de chegar.