Palavra evoca o drama e revela o texto

Raimundo Carrero escreve sobre o romance Enquanto Deus não está olhando, de Débora Ferraz, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2014
Débora Ferraz, autora de “Enquanto Deus não está olhando”
30/11/2014

A estreia de um artista — em qualquer nível e em qualquer área — é sempre uma aposta, uma busca. Quando escreveu sobre Proust, E. M. Forster destacou que, embora o considerasse notável, não podia fazer dele um definitivo juízo de valor, porque o francês ainda não havia concluído a obra, mesmo que tivesse publicado os primeiros volumes de Em busca do tempo perdido. Forster teve, pelo menos, a honestidade e a sinceridade de revelar as suas verdadeiras limitações que são, em síntese, as limitações de todo crítico.

Tudo isso para dizer que a posição do crítico é sempre temerária e exige o máximo de cuidado para não cometer asneiras. Nem o elogio fácil, sem explicações sinceras, nem a crítica inconsequente, muitas vezes cheia de lugares-comuns. No Brasil, Machado de Assis teve que enfrentar este tipo de crítico a partir de Silvio Romero, que se deixava conduzir pela análise impressionista da época, sem conhecer nem investigar as técnicas que o autor de Dom Casmurro usava com grande competência, e que, ainda hoje, não foram suficientemente analisadas. Em todo campo artístico — e literatura é sobretudo arte —, o criador não conhece limites nem regras, nem pode ser reduzido a um esquema. Essa é a verdade absoluta.

No momento em que termino a leitura do romance de estreia de Débora Ferraz, Enquanto Deus não está olhando, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2014, sou tomado de entusiasmo diante desta revelação. Mas contenho os meus adjetivos e procuro investigar, com o máximo de rigor, quais as qualidades desta autora ainda tão jovem. Em princípio, devo destacar que não se trata apenas de um romance de texto, tão em voga no Brasil, o que leva a crítica, em geral, a grandes equívocos: trata-se de um romance de atmosfera, de densa e angustiante atmosfera, representada pela dolorosa busca de Érica, a também jovem personagem que atravessa o romance procurando o pai, que se faz presente apenas nas lembranças, de forma que se revela pelo passado e só através dele. E aí, creio, está a grande qualidade da autora, cuja protagonista está sempre caminhando, caminhando, caminhando.

A primeira frase do livro é forte, muito forte, decisiva: “O fim do mundo chegou cedo desta vez”. Sem dúvida, forte e surpreendente. Outra das louváveis qualidades de Débora — surpreender e fustigar o leitor com cenas ou frases inesperadas. Para um destes críticos chamados de rigorosos, a frase seguinte poderia conter um elemento inadequado, mas não é bem assim. Vejamos: “Subo a ladeira. A rua de paralelepípedos está deserta apesar de não passar das oito da noite, e à minha volta só as casas pequenas e imóveis, é que, vez por outra, dão qualquer sinal de vida”. Compreendo perfeitamente que, ao crítico rigoroso, poderia parecer imprecisa e óbvia a palavra “imóvel”. Mas aí a palavra não tem apenas efeito informativo. Ela carrega toda a pressão, toda a força angustiante da personagem martirizada. Não é uma palavra, é um sentimento. Mostra a imobilidade interior da personagem e seu impressionante sufocamento. Toda casa é imóvel, sem dúvida, mas sem que isso seja dito do ponto de vista da personagem, tudo o mais desaba.

Portanto, essa é a diferença inequívoca do que vem a ser texto de personagem e texto de escritor. O escritor nem sempre considera o mundo do personagem, sente-se dono do texto e usa a mão de ferro, que interfere, altera e, embora seja objetivo, joga o personagem para longe. Pode até acertar na palavra — que costuma chamar de exata — mas que exatidão é esta? — e perde o sentimento que dever ser, exatamente, o sentimento do texto. Tudo isso sempre me parece fundamental observar, porque o autor não é dono exclusivo da narrativa, precisa reconhecer o universo interior dos personagens e suas manifestações.

NOTA
O texto Palavra evoca o drama e revela o texto foi publicado originalmente no suplemento Pernambuco.

Enquanto Deus não está olhando

Débora Ferraz
Record
368 págs.
Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho